Os fatos são irrefutáveis. As pessoas deixaram de exercitar a memória, pois o celular armazena todos os números de telefone que interessam; as pessoas estão viciadas em celular, onde acompanham as redes sociais e se importam se alguém deixou de curtir ou comentar uma foto; as pessoas trabalham uma ao lado da outra, e em vez de falar, dialogar, preferem usar mensagens de WhatsApp. A jornalista espanhola Marta Peirano é autora do livro livro El enemigo conoce el sistema (O inimigo conhece o sistema), descreve uma verdade, que esconde um sequestro rotineiro de nossos cérebros, energia, horas de sono e até da possibilidade de amar no que ela chama de economia da atenção, movida por tecnologias como o celular.
“Há um usuário novo, uma notícia nova, um novo recurso. Alguém fez algo, publicou algo, enviou uma foto de algo, rotulou algo. Você tem cinco mensagens, vinte curtidas, doze comentários, oito retweets. (…) As pessoas que você segue seguem esta conta, estão falando sobre este tópico, lendo este livro, assistindo a este vídeo, usando este boné, comendo esta tigela de iogurte com mirtilos, bebendo este drinque, cantando esta música”, diz ela, em entrevista publicada pela BBC News.
Desde os anos 1990, quando descobriu a cena dos hackers em Madri, até hoje ela não parou de enxergar a tecnologia com olhar crítico e reflexivo. Seu livro narra desde o início libertário da revolução digital até seu caminho para uma ditadura em potencial, que para ela avança aos trancos e barrancos, sem que percebamos. “O preço de qualquer coisa é a quantidade de vida que você oferece em troca, diz Marta. Nesse ciclo, os poderosos do sistema enriquecem e contam com os melhores cérebros do mundo trabalhando para aumentar os lucros enquanto entregamos tudo a eles”.
Na entrevista, Marta explica como é o negócio: “A economia da atenção, ou o capitalismo de vigilância, ganha dinheiro chamando nossa atenção. É um modelo de negócios que depende que instalemos seus aplicativos, para que eles tenham um posto de vigilância de nossas vidas. Pode ser uma TV inteligente, um celular no bolso, uma caixinha de som de última geração, uma assinatura da Netflix ou da Apple. E eles querem que você os use pelo maior tempo possível, porque é assim que você gera dados que os fazem ganhar dinheiro”.
Marta afirma que os melhores cérebros do mundo trabalham para saber tudo sobre a vida de todos. “Todos os aplicativos existentes são baseados no design mais viciante de que se tem notícia, uma espécie de caça-níquel que faz o sistema produzir o maior número possível de pequenos eventos inesperados no menor tempo possível. Na indústria de jogos, isso é chamado de frequência de eventos. Quanto maior a frequência, mais rápido você fica viciado, pois é uma sequência de dopamina. Toda vez que há um evento, você recebe uma injeção de dopamina – quanto mais eventos encaixados em uma hora, mais você fica viciado”.
E evento, explica Marta, é todo tuíte que é lido, tudo o que é postado no Facebook e outras redes sociais. “São eventos. E na psicologia do condicionamento, há o condicionamento de intervalo variável, no qual você não sabe o que vai acontecer. Você abre o Twitter e não sabe se vai retuitar algo ou se vai se tornar a rainha da sua galera pelos próximos 20 minutos. Não sabendo se receberá uma recompensa, uma punição ou nada, você fica viciado mais rapidamente. A lógica desse mecanismo faz com que você continue tentando, para entender o padrão. E quanto menos padrão houver, mais seu cérebro ficará preso e continuará, como os ratinhos na caixa de Skinner, que inventou o condicionamento de intervalo variável. O rato ativa a alavanca obsessivamente, a comida saindo ou não”.
Com tantas afirmações convincentes, talvez seja a hora de se repensar o tempo que se perde lendo bobagens em redes sociais ou postando fotos do último prato feito em casa. Mesmo em tempos de quarentena.