No final de “Vingadores: Ultimato”, vemos o aposentado Steve Rogers (vivido brilhantemente por Chris Evans) pendurando as chuteiras de vez, após uma vida de servidão, e “presenteando” (por justo merecimento) seu bom companheiro dos últimos anos, o Falcão de Anthony Mackie, com o símbolo máximo da honradez super-heróica: o escudo do Capitão América. Rogers tem certeza que escolheu bem seu substituto, seguindo inclusive o mesmo critério utilizado em seu “processo seletivo”, por assim dizer: antes de ser um soldado perfeito, o Capitão América precisa ser um homem bom, um homem justo, que conhece a bondade e a compaixão. Características essas, de personalidade e não de aparência, certo? Guarde essa ideia.
Era o desejo do Dr. Erskine, o criador da formula do supersoldado e um dos padrinhos do “Projeto Renascimento”, ao lado do governo e exército americano, assim como de Howard Stark, pai do saudoso Homem-de-Ferro. Mas notamos ali, que Sam Wilson não se sente totalmente confiante ou apto, para portar tamanho símbolo. Parece o receito natural e carga dramática que viriam para qualquer sujeito que tivesse sido delegado de tamanha responsabilidade. Mas não é somente isso. E esse conflito interno (com motivações externas) é justamente e o que dá início à “O Falcão e o Soldado Invernal”, série original do Disney Plus que acompanha justamente as provações e autoaceitação de Sam Wilson como o novo Capitão América do cinema e tv, ao lado do não menos carismático Soldado Invernal, vivido por Sebastian Stan. Em 6 episódios de aproximadamente 1 hora, vemos o decorrer dessa trama.
Logo no início da série, que conclui seu arco em breve, vamos Sam Wilson tomando a decisão definitiva de não suceder a Steve Rogers e assim, devolver o inconfundível escudo ao governo americano, que rapidamente toma outra decisão: nomear um substituto, escolhendo assim, o “soldado perfeito”, branco, alto e forte, John Walker, vivido pelo talentoso Wyatt Russel, filho do não menos talentoso Kurt Russell, astro de ação dos anos 80. Bucky não compreende o motivo de tanto receito, o que passa a ficar claro assim que a história é conduzida e novos elementos são adicionados a trama: o receio de Sam Wilson é algo absolutamente intrincado em sua alma, afinal, como poderia um homem negro ser o próximo Capitão América? Inclusive essa questão é verbalizada por um personagem na série e Wilson fica sem resposta. Essa discussão já havia ganho força nos quadrinhos, que justamente abriram esse mesmo precedente: Sam Wilson é o substituto de Steve Rogers nas páginas coloridas e também se torna mais um super-herói negro de grande importância. Não o amigo do super-herói, não o parceiro e coadjuvante. O homem negro agora é o líder, o protagonista. Mas somente os quadrinhos não atingem a massa, não deixam claro a mensagem.
Em 2021, mais do que nunca, é preciso enaltecer o discurso de representatividade e a importância que ele tem, principalmente no audiovisual. A Marvel foi corajosa em tomar essa decisão nos quadrinhos, mas os mesmos sempre foram uma mídia muito nichada, como disse a pouco. A importância de vermos um homem feito Anthony Mackie protagonista de uma série e de futuros filmes, justamente na figura de um líder que vem trazer a esperança e representar um senso de justiça e cumprimento do dever que os Estados Unidos da América tanto deveriam se orgulhar, é algo de suma importância, principalmente para as vindouras próximas gerações. Um homem negro pode ser o Capitão América. Um homem negro pode ser livre e vir a ser o que achar que está destinado para ser. Absolutamente todos tem o direito de escolher o que fazer com a própria vida, sem uma aprovação estética da sociedade. A Disney de uns bons anos para cá, nunca escondeu que pretende bater forte nessas questões raciais, inclusive, fazendo a “mea culpa” necessária por conta de muitas décadas passadas em que ela própria ajudou a reforçar o racismo americano em seus filmes e animações, especialmente dos anos 40, 50 e 60. “A Canção do Sul”, de 1946, literalmente apagado do catálogo e história da Walt Disney não deixa mentir. Romantizar a escravidão de fato é algo que absolutamente nenhum estúdio se orgulharia, hoje em dia.
Em tempos que ainda precisamos afirmar o óbvio, não há mais espaço para discussões acaloradas sobre qual o tom de pele que o Capitão América precisa ter, afinal de contas, levando em consideração todo o histórico que citei anteriormente, essa luta transcende as histórias em quadrinhos, o cinema e a tv, e precisa ser cada vez mais relevante e normalizada. Sam Wilson além de tudo isso, representa perfeitamente o espírito de bondade, justiça e compaixão que faz do Capitão América um personagem querido desde a década de 40, aonde os padrões estéticos e de honestidade só eram vistos através de cabelos loiros e olhos azuis. Esse tempo já passou, para a sociedade, para os quadrinhos e principalmente, para o que vemos na tv e no cinema. Leve o que tempo que levar para ser aceito de fato, esse fato já é uma realidade. Não tem como voltar atrás. O primeiro passo é sempre o mais importante, independente da distância da caminhada. O coração de super-herói do Capitão agora bate no peito de um homem negro. Joe Simon e Jack Kirby (os pais do personagem), se vivos, completariam esse mesmo raciocínio, não tenho a menor dúvida. Estariam imensamente orgulhosos.
Felipe Gonçalves
Apresentador do Novo Dia Geek