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sexta-feira, 22 novembro, 2024

A bíblia de Iracema

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Pode-se dizer que Iracema morava numa cidade média, nem grande nem pequena. Mas a cidade conservava os traços provincianos, onde todo mundo sabia da vida de todo mundo. Onde o puritanismo, hipócrito como sempre, imperava nas chamadas rodas sociais. Iracema, que se declarava devota de Santo Antão – que pouca gente conhecia – tinha até lugar reservado nas rezas do Apostolado da Oração. Nas mãos, sempre tinha a bíblia, livro de onde tirava sua filosofia em conversas com outras beatas da cidade. Casada com Antonio Carlos, o Toninho, há seis anos, já provocava comentários por não ter filhos.

Judite, conhecida de Iracema, que trabalhava num consultório médico, se encarregou de espalhar a notícia do porquê Iracema não tinha filhos. Jurava ter ouvido toda a conversa do médico com Toninho num dia, com Iracema dias depois. A razão era que Toninho era impotente. Broxa, dizia-se nos bares. E isso atiçou os garanhões da cidade, que pensavam: se o marido não dá conta, vou comer essa casadinha. Não deu outra – Julião foi o primeiro a conquistar o coração e os beijos de Iracema – terminaram a tarde numa cama de um hotel barato. E Julião passou o feito adiante. Logo foi a vez do José Carlos, do Tonhão, do Chico Sebeira, do Otávio da livraria… Todo mundo estava comendo a Iracema, menos o marido.

A fama de biscate se espalhou rapidamente. O padre não acreditou quando contaram a história de sua paroquiana. Como? – perguntava ele – ela é até do Apostolado da Oração, não falta numa missa, numa procissão… As beatas logo falaram que Iracema usava a bíblia como uma defesa contra as linguarudas. Linguarudas – todas concordaram – mas que falavam a verdade. E Iracema vivia suas aventuras – umas mais cálidas, outras mornas – quase todas as tardes. Dava no hotel, dava no carro, dava no meio do mato e um dia foi em pé mesmo, atrás de uma parede de uma casa que estava sendo construída.

De biscate passou a ser chamada de puta, vadia, vagabunda, vaca, galinha. Ninguém mais se referia a ela como dona Iracema. Era coisa descarada – aquela quenga, aquela vaca. Outras mulheres passaram a controlar mais seus maridos; noivas não perdoavam mais atrasos de seus amados – Iracema era mais velha, tinha 27 anos, mas, reconheciam, era bonita e gostosa. E vadia. Mas Iracema tinha outros segredos.

Às escondidas, tomava seus licores, mas isso era de menos. O marido que controlasse suas bebedeiras. Com o dinheiro que tirava da carteira do marido, mais o que ganhava a título de presente dos ricardões que a comiam, todos os sábados jogava no bicho e na Loteria Federal. Comentava-se até que o dono da casa lotérica também pegava Iracema constantemente, e que os bilhetes de loteria – inteiros, com 20 frações – eram presentes. Um agrado para aquela que o satisfazia na cama colocada num quartinho dos fundos da lotérica. Iracema só jogava no jacaré e na vaca. E isso também produzia comentários maldosos – vaca por sua natureza, e jacaré por ser um animal que se defende com o rabo.

Um sábado a sorte sorriu para ela. Deu jacaré no 1º prêmio da Federal. Ídem no bicho, onde ela havia jogado uma milhar seca do jacaré na cabeça. Na segunda-feira de manhã, esperou a agência da Caixa abrir e foi receber seu prêmio, colocado na sua conta dois dias depois. Um dinheirão. Biscate, puta, quenga ou vadia, mas rica. A primeira providência foi se separar do Toninho, que inconformado, tratou de se afogar na cachaça. A segunda, foi comprar uma casa grande, bonita, inaugurada com uma festa de arromba. O comentário é que nem era uma festa. Era uma orgia daquelas. Homens e mulheres de vida torta como convidados de honra.

Agora rica, e outra vez dona Iracema, passou a receber seus amantes em casa. Num dos quartos com banheiro – uma suíte, como ela aprendeu numa de suas escapadas num motel – tinha até cama redonda e um espelho no teto. E era lá que a farra rodava. O padre ficou amigo de novo, talvez de olho no dízimo gordo. Justificava que até Jesus havia perdoado a puta Maria Madalena – e quem era ele pra não perdoar?

Atualmente, passados 18 anos da loteria de Iracema, comenta-se na cidade que ela continua dando. Mudaram os amantes – Iracema prefere os novinhos, a quem dá presentes como camisas, tênis, jaquetas. Um deles, mais vigoroso que os demais, ganha todas as semanas tanque cheio no seu Gol para passear à vontade. E uma das beatas – ainda beata – filosofou certo dia para as amigas: a Iracema, com dinheiro, não é uma dadeira qualquer. Toninho morreu há uns cinco anos – overdose de cachaça com Viagra. Não viveu para assistir o sucesso de cama da ex-mulher.

CHICO MALVADEZA

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