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sábado, 27 abril, 2024

Sobre falácias e vacinas

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O Dicionário Houaiss define falácia como enunciado ou raciocínio falso que entretanto simula a veracidade. Na lógica argumentativa, diz-se que um argumento é falacioso quando ele simula associações a partir de elementos externos ao tema em questão. São particularmente comuns as falácias ad hominem, que ocorrem quando alguém tenta desqualificar uma proposição com uma crítica ao autor, e não ao argumento.

Também são frequentes as situações inversas, ad verecundiam (também conhecida como magister dixit), nas quais a veracidade de um argumento é deduzida da respeitabilidade do seu proponente. São dignas de nota ainda as falácias ad baculum, ou apelo à força, nas quais a veracidade é deduzida do poder ou da veemência do argumentador. Por fim, e bem relevante ao nosso momento atual, há o raciocínio post hoc ergo propter hoc (“depois disso, logo, causado por isso”).

Todo esse latim vem a calhar com a atual discussão sobre vacinas. Há alguns dias, uma repórter me questionou a que ensaio clínico de vacinas anti-COVID-19 eu me submeteria.

Minha resposta: neste momento, me submeteria a testes de qualquer uma. Que fique clara ao leitor minha posição: todas as vacinas, embora fundamentalmente diferentes em seus componentes e racional imunológico, são promissoras. Mas há quem diga, tornando-se subitamente fã da ciência que, terraplanisticamente, tem agredido, que não aceitaria vacinas “daquele país”.

Vale aqui lembrar a história das vacinas que filósofos da ciência como Alex Broadbent, da Universidade de Johannesburgo, e Jacob Stegenga, da Universidade de Cambridge, apontam como um exemplo de apropriação benéfica do folclore popular pela medicina.

A varíola era uma doença que causava grande número de mortes e danos estéticos permanentes (alguém lembrará que Marcela, que amou Braz Cubas durante 15 meses e 11 contos de réis, foi desfigurada pela então chamada “bexiga”?). Chineses (sim, chineses) e turcos, cientes de que a varíola era menos grave em crianças e conferia imunidade permanente, inoculavam pessoas em tenra idade com fluidos de bolhas da doença, procedimento levado à Inglaterra (sim, Inglaterra) por Lady Montagu.

Ora, esse procedimento foi substituído por outro mais inócuo quando o inglês Edward Jenner percebeu que utilizar o vírus da varíola bovina (vaccinia) era tão eficaz quanto a medida anterior e muito menos arriscado. Substituiu-se a “variolação” pela “vacinação”, que é uma das estratégias sanitárias mais bem-sucedidas da história humana.

Na Idade Média, a Europa se coagulava em feudos e grande parte da sabedoria ficou guardada em mosteiros. Florescia uma medicina altamente racional no mundo islâmico. O Ocidente soube, posteriormente, beneficiar-se de seus ensinamentos.

À medida em que nos aproximamos dos cem mil mortos por COVID-19 no Brasil, depositamos enorme esperança no rápido desenvolvimento (e, tão importante quanto, ampla disponibilidade) de uma vacina.

Instituições sérias do nosso país, como o Instituto Butantan e a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), estão heroicamente envolvidas em pesquisas para determinar eficácia da imunização.

Não é momento para argumentos ad hominem (anti-chineses) ou ad verecundiam (“pró-Oxford”) e certamente devemos repudiar qualquer argumento ad baculum (a ciência não pode se submeter ao poder).

Proponho uma suposição: alguém está doente e veste uma camisa laranja. Após algum dia, cura-se. O que teve a roupa a ver com isso? É triste ouvir de médicos o post hoc ergo propter hoc ser aplicado à cloroquina, que, até o momento, parece tão eficaz contra COVID-19 quanto o chá de erva cidreira.

O que chamamos de “medicina científica” tem até o momento se beneficiado de um diálogo com certos conceitos tradicionais, como já foi dito no caso da varíola. Essa doença foi erradicada, fim que muito desejamos para a COVID-19. Vacinas são bem-vindas. Elas não têm, ou não devem ter, cor, ideologia ou partido. Contêm, isso sim, moléculas. E que venham todas, sejam de DNA, vírus quiméricos, microorganismos inativados ou antígenos produzidos em engenharia genética.

Que nessa saudável corrida científica vença aquela vacina que nos trará melhor eficácia, segurança e (nunca é demais insistir) que permita rápida fabricação de bilhões de doses. Tentemos deixar as imunizações longe de quaisquer manipulações partidárias e ideológicas. Dar uma chance à racionalidade é, também, dar uma chance à vida.

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