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domingo, 28 abril, 2024

Uma peste obrigou o Brasil a criar dois institutos de pesquisas

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Os institutos foram instalados longe das cidades – o Oswaldo Cruz no Rio e o Butantan, em São Paulo, devido ao nome da fazenda que o abrigou

Em agosto de 1899, poucos meses antes do Brasil completar dez anos como república, os portugueses alertaram os brasileiros sobre a peste bubônica, detectada na cidade do Porto. Há mais de um século não havia surtos da doença na Europa. Os portugueses alertaram o então diretor-geral da Saúde Pública brasileira, Nuno de Andrade: Brasil e Portugal tinham boas relações comerciais, e se nada fosse feito, logo a peste estaria por aqui também. O telégrafo era o meio de comunicação mais eficiente da época.

Alarmado, Nuno pensou em adotar medidas severas, que foram apoiadas pelo então ministro da Justiça, Epitácio Pessoa. Decretou-se que todos os navios portugueses e espanhóis ficariam sujeitos a uma quarentena de 20 dias (mas quarentena não são quarenta dias?), proibindo-se o desembarque de uma série de mercadorias no país. Não faltaram críticas ao secretário e ao ministro.

Jorge Alberto Leite Pinto, diretor de Higiene do Rio de Janeiro, publicou cartas no Jornal do Comércio considerando as medidas descabidas. Nas cartas, Jorge abordou também a questão econômica, alegando prejuízo aos comerciantes, afirmando que a peste era facilmente tratável (parece que foi hoje).

Dois cientistas, Alexandre Yersin e Shibasaburo Kitasato identificaram a origem da doença, um bacilo, em 1894. Outro cientista, Paul Louis Simond, concluiu que a doença era transmitida aos humanos pelas pulgas alojadas em ratos.

Em Santos, aconteceu o primeiro caso da peste no Brasil. O médico sanitarista Guilherme Álvaro fora chamado para atender um caso de febre amarela em outubro daquele ano, mas estranhou o aspecto do cadáver, e ao olhar tudo com mais atenção notou muitos ratos mortos perto da casa, que era próxima de um armazém de bagagens de passageiros de navios. Como houve contestação de seu diagnóstico (pelos empresários, que temiam mais prejuízos), foi pedida uma reavaliação do caso, e para Santos foi enviado um desconhecido cientista, Vital Brazil.

Vital achava que era tifo, até que encontrou bacilos da peste nas necrópsias. “A característica epidemiológica, a observação clínica e a prova bacteriológica nos levam a concluir que a moléstia que estudamos em Santos é, sem dúvida alguma, a peste bubônica”, escreveu em seu relatório. E Vital Brasil também foi acometido pela doença.

No livro A Campanha Sanitária de Santos, de 1919, Guilherme Álvaro escreveu: “Ao abrirmos as portas do armazém onde funcionara o bar, deparamos com mais de 40 ratões mortos espalhados pelo solo, muitos já em decomposição, jazendo alguns sobre os balcões. No andar superior ainda havia ratos mortos, vários existindo na cozinha e na pequena despensa ao lado. Fizemos incinerar logo mais de 60 ratos encontrados em todo o prédio, e dada a presença de pulgas que nos atacaram e aos desinfectadores, não compreendemos ainda hoje por que não fomos vitimados pela doença, que na véspera havia prostrado o doutor Vital Brazil, no Hospital de Isolamento, onde trabalhava”.

Contrariando a ciência, o governo queria mais evidências. Foram chamados os médicos cariocas Oswaldo Cruz e Eduardo Chapot Prévost, que atestaram que se tratava da peste. O diretor-geral de saúde pública pediu demissão por se considerar incapaz de evitar a chegada da doença ao país. O ministro da Justiça, entretanto, não aceitou o pedido, e Nuno de Andrade permaneceu no cargo até 1903.

Se era tarde demais para conter a disseminação da peste, que de fato chegou ao Rio de Janeiro no verão de 1900 e se espalhou por outras cidades como São Luís, Porto Alegre e Recife, a estratégia se voltou para as medidas de enfrentamento. O principal objetivo era trazer da Europa o soro para o tratamento dos doentes. “O problema é que o estoque estava muito baixo, por causa dos surtos em outras cidades, como no próprio Porto e na Ásia, diz a historiadora Dilene Raimundo do Nascimento, da Casa Oswaldo Cruz. Oswaldo se propôs então a criar institutos soroterápicos para produzir o soro no Brasil”.

O governo concordou e encarregou os pesquisadores que trabalharam na investigação da missão de fundar os institutos. A idéia de impedir as quarentenas é que acabou proporcionando a criação de duas das maiores instituições de pesquisa do Brasil, para tentar impedir novas epidemias. No Rio e em São Paulo,os institutos foram instalados em locais afastados por causa do medo da população em relação aos experimentos lá feitos.

Em São Paulo, o lugar escolhido foi a Fazenda Butantan (nome que em tupi-guarani significa terra muito dura), uma antiga chácara com 400 hectares comprada pelo governo que ficava a 8 quilômetros do centro da capital e a 6 quilômetros do hospital de isolamento, atual Instituto Emílio Ribas. Inicialmente, foi considerado um laboratório do Instituto Bacteriológico, até virar instituição autônoma em 1901.

No Rio de Janeiro, a área escolhida foi a fazenda de Manguinhos, em Inhaúma, na periferia da antiga capital federal. Tudo era mangue, chegavam lá de barco e depois de charretes. Um dos discípulos de Oswaldo Cruz, Ezequiel Caetano Dias, descreveu: “Foi aí, nessas toscas e velhas construções que se começou a fazer medicina experimental”. No dia 25 de maio de 1900, foi inaugurado o Instituto Soroterápico Federal, atual Fundação Oswaldo Cruz. O prédio principal, conhecido como Castelo de Manguinhos, e os prédios adjacentes — cavalariça, quinino, pavilhão da peste, aquário, hospital e biotério —, começaram a ser construídos em 1903 e ficaram prontos em 1918.

Mesmo com a produção nacional de soro, no primeiro ano de epidemia, o Rio de Janeiro registrou 500 mortes. Em 1903, com o número de casos aumentando, Oswaldo Cruz foi nomeado diretor da Diretoria Geral de Saúde Pública pelo novo presidente Rodrigues Alves, que tinha como principal meta a modernização do Rio de Janeiro. A missão de Oswaldo Cruz era acabar com as epidemias de febre amarela, varíola e peste bubônica.

Como diretor-geral, Oswaldo Cruz estabeleceu novas estratégias para eliminar a peste da capital. Entre elas, a fim de engajar a população na captura e extermínio dos vetores, criou um sistema de compra de ratos. As pessoas os entregavam aos agentes sanitários, apelidados de ratoeiros, em troca de uma pequena quantia. Ao contrário de outras medidas de Oswaldo Cruz, consideradas severas demais e estopim para revoltas populares (a mais famosa é a Revolta da Vacina, de 1904), essa teve adesão, embora um pouco às avessas. Uma das lendas urbanas mais conhecidas do período é a de Amaral, um morador que criava ratos com o único propósito de vendê-los e acabou preso por isso.

Na capital paulista, medida parecida foi aplicada, com o valor de 300 réis por rato abatido. Diferentemente do Rio de Janeiro, cabia à população a caça e a venda dos animais ao desinfectório central. Em 1904 a estratégia foi reformulada, e os animais passaram a ser exterminados por envenenamento com gases tóxicos. A epidemia de peste bubônica no Brasil durou até 1907, mas o último registro em seres humanos ocorreu em 2005 — e ela continua circulando entre os roedores.

Hoje, o Butantan é o principal responsável pela produção de vacinas do Programa Nacional de Imunizações (PNI). A Fiocruz, além da central no Rio de Janeiro, está em 7 cidades brasileiras e na capital de Moçambique, Maputo. Na atual pandemia do novo coronavírus, pesquisadores do Butantan estão desenvolvendo um composto de anticorpos para combater a covid-19 e comandam a busca por uma vacina, enquanto a Fiocruz integra uma coalizão mundial para acelerar as pesquisas sobre o vírus. Um dos laboratórios cariocas foi também nomeado pela Organização Mundial da Saúde referência para covid-19 nas Américas.

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