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segunda-feira, 29 abril, 2024

A Chegada: o filme e a linguista

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Ted Chiang é um autor premiado de ficção científica (prêmios Nebula, Hugo, entre outros). De um de seus contos “História da sua vida”, Denis Villeneuve criou o filme “A Chegada” (2016). A obra de Ted Chiang assemelha-se aos contos de Phillip K. Dick (Blade Runner) e aos livros de Robert J. Sawyer (Flashforward). Do primeiro, ele pegou mais o estilo e do segundo, o conteúdo científico levado para a ficção. O título do conto refere-se à história da filha e o título do filme retrata a história da visita dos alienígenas. Dois focos diferentes numa mesma história.

O interessante da história, escrita e cinematográfica, é o fato de o ator principal ser uma mulher e ser linguista. Curiosamente, o próprio Ted Chiang, em suas “Notas sobre os contos”, que acompanha o livro, não menciona a presença das atividades linguísticas, estando mais interessado na questão física do tempo. O texto e o filme misturam o passado com o presente e o futuro. O presente é o encontro com os alienígenas e o tempo da narrativa. O passado e o futuro são as histórias de vida da filha da Dra. Louise Banks. O trabalho da Dra. Banks é o que move a história, não o do físico que a acompanha.

Os alienígenas são descritos como seres extraterrestres de forma física de certo modo semelhante a um polvo que anda sobre os tentáculos. Reconhecidas todas as dificuldades de comunicação, o exército americano convoca cientistas, políticos e militares para entrarem em contato com dois deles, identificados no conto como Melindrosa e Framboesa. Os alienígenas transformam uma espécie de espelho em uma tela na qual eles se revelam e se comunicam. No conto, os humanos também usam tela para transmissão de dados. No conto, há muitas informações linguísticas. No filme, aparece apenas o processo de comunicação, mostrando dificuldades e sucessos. Aparentemente, os alienígenas vieram apenas visitar mais um planeta e logo foram embora. O filme introduz um ataque dos humanos, que não existe no texto. É Hollywood em ação.

A comunicação sonora é logo rejeitada, porque os alienígenas emitem sons estranhos, que não poderiam ser identificados como fonemas. A Dra. Banks usa um espectrógrafo de som para analisar as gravações e ver o que havia de igual e de diferente. (O primeiro espectrógrafo foi chamado de “Visible Speech” – fala visual). Um procedimento linguístico fundamental. De suas observações, chega à conclusão de que seria melhor partir para uma comunicação via escrita, assumindo as marcas alienígenas como um sistema ideográfico de escrita, depois, interpretado como um sistema semasiológico. Sua conclusão fica corroborada no momento em que os alienígenas “entendem” melhor gráficos científicos. Paralelamente, há uma discussão entre a linguista e o físico sobre a questão da variação, a partir de uma teoria de Fermat. Essa discussão justifica o modo como o futuro é tratado. A escrita semasiológica caracteriza um modo não linear de representação das informações, embora sejam organizadas de algum modo. Exemplos típicos são os mapas e os gráficos. Para nós, seria impossível desenvolver uma língua falada nesses moldes. Mas aquela era a língua dos alienígenas.

A condução das análises da linguista mostra que o autor tem bons conhecimentos de linguística moderna, sobretudo de fonologia. A natureza semasiológica da língua dos alienígenas foi uma descoberta notável e possibilitou uma comunicação primitiva e inicial. Algumas informações foram classificadas como “semagramas”, um apelo à fonologia. Com os semagramas (conjuntos organizados de significados), a Dra. Banks consegue estabelecer uma aparente “linearidade” e “categorização” da informação, coisa tida antes como impossível por causa das variações nas mensagens recebidas. A questão teórica não fica explorada, apenas gera uma prática que, no contexto, funciona bem.

Embora algumas pessoas acreditem na teoria da Dra. Banks, ela é falsa. O conhecimento é fruto do pensamento e este da linguagem oral. A escrita só existe como uma abstração da fala. Um quadro, um mapa ou um gráfico só fazem sentido quando o descrevemos com palavras. Sem as palavras, qualquer coisa no mundo se torna “inexistente” para nós. Se não temos os termos próprios, inventamos modos de falar e assim podemos falar sobre qualquer coisa. Sempre processamos o pensamento através do nosso sistema linguístico que, necessariamente, precisa de um “caminho”, de uma linearidade interpretativa. Não misturamos tudo, como se o resultado fosse correto. Há regras. A própria identificação de possíveis “fonemas” e “morfemas” (“semagramas”) exige tal realidade. As conclusões da Dra. Banks, nesse sentido, refletem um desconhecimento comum e generalizado sobre os sistemas de escrita. Ela fugiu da fonologia e caiu na armadilha da escrita. Apesar disso, é um belo filme e um excelente conto de ficção científica.

Luiz Carlos Cagliari é professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara.

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