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terça-feira, 26 novembro, 2024

PCC está mais organizado e disciplinado irmandade tem 35 mil membros

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Desde que surgiu, o Primeiro Comando da Capital se aperfeiçoou. É o grupo mais poderoso do crime organizado da América do Sul

Fala-se em rituais secretos, tribunais, disciplina rígida, um código de honra próprio, e principalmente em organização e disciplina. Desde que “nasceu”, em agosto de 1993, em Taubaté, o Primeiro Comando da Capital – PCC – não parou de crescer. Hoje conta com 35 mil membros, dentro e fora das cadeias, e é considerado o grupo mais poderoso do crime organizado. Quem assistiu ao filme Carandiru tem vaga idéia da desumanidade existente nas prisões no começo dos anos 1990. Carandiru está muito romantizado.

Na época, os presídios brasileiros eram bem piores que os de hoje. Cada prisão tinha alguém que mandava – entre os presos, entenda-se – e esse chefe é quem autorizava que violassem mulheres dos que estavam devendo ou o abuso de presos mais fracos e vulneráveis. Controlava até a distribuição dos presos por celas. Sidney Salles, hoje com 52 anos e morando em Várzea Paulista, conta sua passagem pela cadeia. “Os que tinham mais dinheiro viviam melhor e subjugavam os outros. Quando chegaram, começaram a cuidar das pessoas que estavam presas. Pessoas mais vulneráveis, cuja integridade física estava em perigo.

Criaram um poder para protegê-las, para que não apanhassem ou fossem estupradas”. Salles ficou preso na penitenciária do Carandiru durante seis anos por assalto e pôde trocar os crimes pelo púlpito de um pastor evangélico graças ao fato de ter sobrevivido àquela época em que qualquer disputa na prisão era resolvida a facadas ou socos. Sidney sobreviveu ao massacre do Carandiru, quando morreram oficialmente 111 presos. “Para não ver sua mãe chorar, você fazia a de outro chorar”, diz ele. Esse inferno começou a mudar com um jogo de futebol no pátio da prisão de Taubaté em 31 de agosto de 1993, o dia em que o PCC nasceu.

O PCC gerencia negócios de drogas – estima-se que movimente 100 milhões de dólares por ano. Já expandiu fronteiras, mandando drogas para a Europa e outros países da América do Sul. Em janeiro deste ano, o PCC fez história no Paraguai ao promover a maior fuga de prisão daquele país – todos de membros do PCC.

O jogo de futebol entre o Primeiro Comando da Capital e o Comando Caipira, em 1993, foi o momento fundador em que o poder mudou de mãos naquela prisão, segundo os investigadores. A equipe vencedora matou e decapitou o preso que dominava a prisão e o subdiretor. Chutou a cabeça do primeiro, pendurou a do segundo em uma estaca para que todos vissem. Uma cena bárbara, descrita no livro PCC: A Facção (Editora Record), de Fátima Souza. Inédita na época. Hoje, não mais.

Os oito prisioneiros que venceram a partida decidiram formar uma aliança. Eram irmãos e o inimigo não seriam os outros presos, mas o sistema, as autoridades, o Estado. Juntos, exigiriam que seus direitos fossem respeitados. Aceitavam cumprir sua sentença, mas não tolerariam serem mortos atrás das grades, que seus parentes fossem humilhados ou não ter água para se lavar. Conseguiram se tornar a voz dos presos perante o Estado. Prosperaram ao implementar seus métodos de administrar os negócios e resolver conflitos nos bairros mais esquecidos pelas autoridades.

O PCC estendeu seus métodos para se tornar um poder inquestionável nas prisões e favelas. Com o núcleo duro de 35.000 irmãos batizados nestes 27 anos, explica Lincoln Gakiya, um promotor que os combate desde 2006, centenas de milhares de outras pessoas — delinquentes, biscateiros, mas também faxineiras, pedreiros, vendedores ambulantes ou de telemarketing— seguem suas normas. Vivem no ritmo estabelecido pelo Primeiro Comando da Capital.

Seu funcionamento é diferente do dos cartéis mexicanos, da máfia italiana e de outros grupos criminosos brasileiros (as chamadas facções), dizem os acadêmicos que o estudaram. A organização aplica seu próprio código de justiça, proíbe o crack nas prisões que controla e se orgulha de estar por trás da queda drástica de assassinatos das últimas duas décadas em São Paulo. O promotor Gakiya acrescenta que o PCC controla as rotas do tráfico de drogas, da produção à distribuição em portos do outro lado do Atlântico. Aliados europeus ou africanos dão o último passo – levam-nas aos europeus.

Apesar de possuir estatuto e emitir circulares, sua operação é cercada de mistério. Nenhum irmão geralmente admite ou proclama que pertence ao PCC. Impossível saber como eles se reconhecem. Alguns acadêmicos destacam seus modos empresariais, outros, os métodos militares. Para o sociólogo Gabriel Feltran, autor do livro Irmãos, Uma História do PCC (Editora Companhia das Letras), a organização funciona como a maçonaria: “É uma sociedade secreta organizada com uma distinção muito clara entre o negócio de cada um e a organização política. Suponha que sejamos três maçons. Eu tenho um restaurante, outro tem uma oficina de peças de reposição e outro é escritor … Cada um tem o seu negócio, não são negócios da maçonaria. Mas quando decidimos pertencer a uma irmandade, somos irmãos. O fato de meu restaurante ter mais dinheiro do que a sua oficina não implica distinções dentro da irmandade. É uma rede de auxílio mútuo”, explica Feltran, que estuda a dinâmica do grupo há 15 anos por meio de entrevistas com centenas de moradores de favelas paulistas.

“É uma organização única que dá aos membros muita independência em suas atividades criminosas, deixando bem claro que não podem ser predatórias”, concorda Steve Dudley, que estuda crime organizado na fundação Insight Crime. Dudley enfatiza que o PCC proíbe a extorsão, algo incomum para uma organização que exerce tanto controle sobre o território em que opera.

A idéia é que, se os irmãos se saem bem, o PCC também. O autor de Irmãos a descreve como uma organização notavelmente horizontal, mas com posições disciplinares e de gestão que a articulam. Uma rede entre criminosos que colaboram e cujo coração são os debates internos —às vezes via celular da prisão— para chegar a um consenso sobre a decisão correta, sempre de acordo com seus códigos.

Feltran ressalta que não fazem negócios com qualquer um. Seus sócios “não podem ter estuprado, matado injustamente (dentro de seus princípios de justiça), não podem ter cometido erro grave em uma missão ou não terem sido fortes o suficiente para evitar delações”. Abusar de crianças, assassinar sem permissão, pertencer a um grupo rival ou entregar um irmão significa morte; alguns erros repetidos, desterro. E os primeiros erros, com advertências ou multas. O estatuto do PCC, reproduzido no livro de Feltran, possui 18 artigos: o primeiro diz que seus membros devem se comprometer “a lutar pela paz, justiça, liberdade, igualdade e unidade”, com o objetivo “sempre do crescimento da organização e com respeito à “ética do crime”.

Entra-se no PCC a convite de pelo menos dois membros que serão os padrinhos do batizado, explica a antropóloga Karina Biondi, autora do livro Junto e Misturado: Uma Etnografia do PCC (Editora Terceiro Nome). Ela conta que o grupo procura candidatos com certas habilidades. A principal é enorme poder de persuasão. Mas também boa oratória e um histórico de lealdade ao crime. Na cerimônia de batismo, eles prometem que a irmandade estará acima de tudo. “Várias mulheres me confessaram que se sentiram magoadas quando seus maridos aderiram. Diziam: ‘Fiquei em segundo plano, prefere o PCC”, conta Biondi, professora da Universidade Estadual do Maranhão, que anos atrás começou a investigar as dinâmicas carcerárias do grupo por meio de entrevistas com prisioneiros e parentes enquanto visitava o marido, preso por um crime pelo qual foi absolvido.

Biondi explica que o grupo abriu a porta para as mulheres – as irmãs – alguns anos atrás, mas que ainda são poucas porque é muito difícil criar seu próprio espaço em um mundo fortemente machista. O interesse em incluí-las chegou ao ponto de organizar uma campanha na qual se propunha isentá-las do pagamento da mensalidade se fossem batizadas, diz Biondi. A contribuição, que é de mil reais e é menor para os membros presos, é usada para pagar as viagens de parentes a prisões remotas, cestas básicas de alimentos para as famílias mais necessitadas, brinquedos de Natal ou armas.

Para manter a polícia distante e não prejudicar o negócio das drogas, o PCC criou um sofisticado sistema de justiça próprio baseado em três princípios que se aplicam dentro e fora das prisões: o acusado tem o direito de se defender, está proibido matar sem autorização e os vereditos são debatidos até que seja alcançado um consenso. Resolvem disputas de todos os tipos.

Muitas vezes, o sistema da irmandade substitui a Justiça comum. Em janeiro, quando a polícia interrogou Giulia Cândido, 21 anos, sobre a morte de seu bebê, e depois a deixou ir, o PCC assumiu o caso do seu jeito. O bebê havia chegado ao hospital sem vida, com marcas de mordida no rosto e fraturas no crânio, tórax, mandíbula, nariz e clavícula. Para a polícia, não havia indícios de que ela tivesse participado do espancamento fatal, segundo relatou a imprensa. Mas Cândido foi sequestrada por criminosos ligados ao PCC que a colocaram diante de um tribunal do crime. Teve sorte: a polícia conseguiu resgatá-la viva. Segundo as autoridades, a organização já a havia sentenciado à morte.
As sentenças são cumpridas em questão de horas. Ao contrário dos júris populares, esses tribunais criminais não terminam com uma votação. “Chegam a um consenso, eu nunca soube de uma votação”, explica Feltran. Ele diz que suas fontes sempre lhe falaram de “debates infernais de horas e horas”. O sociólogo estudou um caso em que chegou a haver 40 participantes por telefone. Apesar de ser um sistema feito por delinquentes, Feltran ressalta que é o mais parecido a um sistema de justiça rápido, eficaz e gratuito em muitas das periferias mais pobres e abandonadas do Brasil.

O crime organizado surge onde o Estado deixa espaços. E as prisões do Brasil são há décadas um imenso buraco negro. Nos anos noventa era mais perigoso a um delinquente estar preso do que nas ruas. Os criminosos se matavam por qualquer assunto dentro e fora da prisão. E eram exterminados. O PCC talvez não nascesse e subisse tão rapidamente sem a matança do Carandiru, a pior da história brasileira, em 1992. Um ano antes da truculenta partida de futebol em que a irmandade foi fundada, a polícia entrou no maior presídio da América Latina para sufocar uma rebelião e matou 111 detentos. Sidney Salles, que sobreviveu ao massacre, abandonou o crime e se transformou em um pastor evangélico que dirige cinco centros de reabilitação e dá palestras sobre o sistema carcerário que o levou até a Harvard, foi testemunha desse processo: a chegada dos irmãos foi bem-recebida por grande parte dos presos, diz.

Em um país como o Brasil, que tem mais de 800.000 pessoas presas, a ascensão do PCC representou uma mudança radical para os réus, diz Salles. De repente alguém defendia os que eram estuprados, os que não tinham visitas familiares porque eram muito pobres para custear a viagem, os que não tinham uma escova de dentes e água para se lavar. “Foi aí que o PCC entrou, desempenhando o papel do Estado. Até hoje”.

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