São escândalos de subornos, nepotismo e até espionagem. Como em tudo, a Santa Sé tem suas facções que lutam para ter ou manter o poder
É um verdadeiro reality show todos os dias, mas não de famosos ou beldades. Seus protagonistas são cardeais, executivos financeiros e mulheres de vida torta bancando espiãs, e gastando milhares de euros em artigos de luxo que estavam destinados a países pobres. Isso é o Vaticano dos dias atuais. Em vez de orações e devoções, os prazeres que o mundo – e o demônio – oferece.
O pivô dos escândalos é o cardeal Giovanni Angelo Becciu, que já foi um dos mais poderosos do Vaticano. Tão poderoso que estava cotado para ser papa quando da renúncia de Bento 16. Melhor que isso, o cardeal é uma espéce de guardião dos segredos do Vaticano, uma verdadeira caixa preta. E nos últimos tempos, algumas denúncias abalaram a credibilidade e a moral do cardeal. São denúncias de nepotismo, suborno para um grupo de supostas vítimas acusar um cardeal rival de pedofilia, malversação de dinheiro…
O cardeal não é cardeal qualquer – ele sabe bem o que está enfrentando, e não vai dexar pra lá. E ninguém consegue advinhar como tudo isso vai terminar. Giovanni Angelo Becciu foi secretário-adjunto na época de Bento 16 e sobreviveu à limpeza promovida por Francisco em sua chegada. O cargo é o terceiro em importância no Vaticano.
Quando o papa Francisco assumiu, mandou para casa o cardeal Tarcisio Bertone, que era secretário de Estado de Bento 16. Bertone tinha rabo de palha, como haver construído um apartamento de 700 metros quadrados, cobertura, com dinheiro destinado a um hospital infantil. Só que o cardeal Becciu, sutil e escorregadio, sobreviveu – ele era o número 2 na secretaria de Estado – com o tempo se tornou uma pessoa de máxima confiança do papa Francisco.
Becciu tratou de assuntos delicados. Bem preparado, esperto e inteligente, conseguiu formar uma legião de apoiadores, que ainda o defende. Ter amigos é uma coisa, inimigos, outra bem diferente. E não faltam inimigos a ele. Em 2018, antes de transformá-lo cardeal, Francisco o substituiu e o transferiu para ser prefeito da Congregação para as Causas dos Santos. Parece promoção, mas não é. Nessa Congregação o cardeal não tem o poder de fogo que tinha antes. Seria como uma empresa colocasse um gerente num setor sem qualquer importância em vez de demiti-lo.
No ano passado, ficou conhecida a participação do cardeal na compra de um imóvel em Londres. Por uma dessas estranhas coincidências, o negócio ficou em 300 milhões de euros (quase dois bilhões de reais), bancado pelo Banco do Vaticano (outro inimigo da secretaria de Estado), que levantou suspeitas sobre lavagem de dinheiro. Nessa brincadeira caíram o chefe da Gendarmeria, Domenico Giani e cinco de seus colaboradores mais próximos. Mas um deles, o monsenhor Alberto Perlasca, resolveu colaborar e contar à Justiça tudo o que sabia.
NO fim de setembro, o papa Francisco chamou o cardeal e lhe pediu explicações. Elas vieram, mas não convenceram. O papa então pediu Becciu a renúncia de seus direitos cardinalícios – fato que aconteceu somente três vezes nos últimos 120 anos. Mas a coisa não para por aí. Becciu também teria favorecido parentes em Angola e Cuba, autorizando transferência de dinheiro para seus familiares.
As coisas azedaram de vez quando a Interpol, munida de um mandado de prisão internacional, deteve Carolina Marogna, de 39 anos, dona de uma agência de detetives com sede na Eslovênia. A imprensa italiana já tratava Carolina como “a dama do cardeal”. Com alguma razão – Becciu havia transferido 500 mil euros para a agência de Carolina cumprir missões diplomáticas e fazer algumas investigações. Com tanto dinheiro, Carolina tratou de gastar em artigos de luxo. A jornais, Carolina disse que não era missionária, que trabalhava por dinheiro e que o gastava como bem entendesse.
Calma, que a guerra ainda não acabou. Um cardeal australiano ficou um ano preso, acusado de abusos contra menores. No fim do processo, acabou absolvido. As testemunhas haviam sido subornadadas por Becciu. E ele tem motivos e inteligência para ignorar os escândalos que ele mesmo provoca. Ao renunciar aos direitos cardinalícios, perde a chance de ser votado num próximo conclave, caso o papa Francisco morra ou renuncie. E, depois de mais de 40 anos, muita gente acha que o próximo papa deverá ser italiano (e aí estava o perigo Becciu). O último italiano papa foi João Paulo Iº, que morreu misteriosamente 33 dias após haver assumido o papado.