Sem precisar fazer concorrência pública (ou licitação) por causa dos decretos de calamidade pública, tem muito político espertinho enchendo os bolsos
Qualquer governo, federal, estadual ou municipal, quando precisa comprar alguma coisa abre concorrência, e a lei determina que seja comprado do fornecedor que tiver o melhor preço. Era assim. Por causa da pandemia, muitas prefeituras e governos estaduais fizeram decretos de estado de calamidade pública. E assim podem comprar o que bem entenderem sem precisar de concorrência. Abriu-se então uma brecha enorme para a corrupção.
Para haver corrupção é preciso que o comprador e o fornecedor se entendam. Uma empresa, a SKN, parece ser a que melhor entende a linguagem de compradores, no caso, governos. A revista Época denunciou há semanas que o governador Helder Barbalho, do Pará, havia instalado nos hospitais estaduais respiradores com defeito. Esses respiradores – 152 – foram entregues pela SKN, uma empresa importadora. Quando da denúncia, o governo do Pará classificou, como de costume, como mentiras. A história só mudou quando o Ministério Público foi conferir a tramóia. “Indignado”, o governo paraense pediu à Justiça para bloquear R$ 25 milhões da SKN, alegando que o problema era com a empresa.
A SKN também tem problemas no Rio de Janeiro. Para entender: outra empresa, a MHS Produtos e Serviços, tinha contrato de R$ 56 milhões com o governo de Wilson Witzel para fornecer 300 respiradores. Responsável pela importação dos aparelhos: SKN. Como nada foi entregue, o responsável pela MHS, Glauco Guerra, foi preso em Belém, no Pará. E quem estava em companhia dele, num descontraído bate-papo? André Felipe de Oliveira da Silva, um dos sócios da SKN. Também foi preso.
Tem mais mutreta. As compras de mil respiradores custaram ao governo do Rio R$ 183 milhões. Coisa suspeita – o preço de cada um (R$ 187 mil), cobrado pela MHS é exatamente o dobro do que cobram os fabricantes de respiradores. E tudo pago antecipadamente, antes da entrega.
Em Roraima, o secretário de saúde comprou 30 respiradores por R$ 6 milhões – 200 mil cada um. Em Santa Catarina, dois secretários compraram 200 respiradores por R$ 33 milhões – 165 mil cada. O fornecedor recebeu, e os respiradores não foram entregues. E os dois secretários pediram demissão, provavelmente com os bolsos cheios. Mas Santa Catarina tem mais histórias escabrosas.
Por lá, o Ministério Público e o Tribunal de Contas desconfiaram das compras. Houve concorrência, daquelas bem marotas, e quem ganhou foi a empresa Veigamed, com sede em Nilópolis, na Baixada Fluminense, e em Macaé, na Região dos Lagos. A dona da Veigamed trabalhou como motorista e datilógrafa nos últimos tempos – a suspeita é que ela seja laranja. Mas a Veigamed é um pouco mais complicada. O endereço da empresa é de um galpão cujo dono é o deputado estadual Marcello Siciliano.
A importadora que a Veigamed usou para trazer os respiradores é a Cima Industries, com sede no Panamá. E quem representa a Cima no Brasil é Samuel Rodovalho, filho do bispo e ex-deputado federal Robson Rodovalho, que comanda a Igreja Sara Nossa Terra.
Prefeituras também estão abusando. Lagoa Dentro tem sete mil habitantes e fica no interior do estado da Paraíba. É pouco dinheiro, mas dá dimensão da corrupção endêmica no país. A prefeitura de lá pagou R$ 15 mil, do Fundo Nacional de Saúde, para mandar imprimir cartilhas informativas sobre a covid-19. Problema: O Ministério da Saúde já tem essa cartilha e está dando de graça para quem quiser. O dono da gráfica que fez as cartilhas – que nunca apareceram, ninguém sabe, ninguém viu – tinha feito o mesmo serviço para outra prefeitura, a de Aroeiras, também na Paraíba. Custo da brincadeira para imprimir sete mil cartilhas: R$ 280 mil. Outro detalhe: a gráfica era fantasma. Mais um: Aroeiras tem 18 mil habitantes.
O fato de não haver necessidade de concorrência (licitação) torna mais fácil a vida de um corrupto. Ele não precisará procurar o vencedor da concorrência para combinar a propina. Na maioria dos casos, o fornecedor – tão safado quanto o comprador – irá oferecer a vantagem do tipo “compra de mim que dou 30% de comissão, em dinheiro”.
Nos tempos atuais, há mais fiscalização e mais divulgação. Ou seja, mais acesso à informação. Como o país já passou por situações semelhantes, imagina-se o quanto foi roubado por políticos desonestos nessas situações. Dizia-se, na época do governador paulista Ademar de Barros, que qualquer compra feita pelo estado tinha um pedágio de 10%. Bons tempos. Há rumores de pedágios em prefeituras de até 50%.