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sexta-feira, 22 novembro, 2024

Primeira Travesti a adotar no Brasil é mãe de duas meninas Trans e um menino PCD

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Alexya Salvador, 37, é pastora e coordenadora pedagógica em uma escola de São Paulo

“Sempre tive o sonho de ter filhos. Vim de uma família muito grande e, desde muito jovem, dizia que queria ter pelo menos três. Mas não imaginava que eu seria mãe, muito menos que eu seria a mulher que eu sou hoje [Alexya fez a transição de gênero aos 28 anos]. Quando me casei com o Roberto, há 12 anos, fomos nutrindo esse desejo, até que nos sentimos prontos para ser pais. Em 2014, eu já tinha feito a minha transição, e comecei a pesquisar histórias de mulheres trans ou travestis que tinham passado por um processo de adoção, e não encontrei nada. Isso me deu muito medo. Fomos conversar com a Cecília Coimbra, advogada especialista em adoção há mais de 18 anos, e ela disse:’Realmente, não conheço no Brasil uma travesti que tenha adotado. Então você vai ser a primeira’….

No ano seguinte, encontramos o Gabriel, nosso primeiro filho, que é um menino com necessidades especiais. Quando nós conhecemos ele, entramos no Cadastro Nacional de Adoção, e durante todo o processo eu tive medo da adoção ser interrompida por preconceito, algo assim. Se eu falar que em algum momento eu fui tratada com preconceito ou violência de forma direta, estarei mentindo, mas sofri com o preconceito velado: olhares, desconfortos, sabe? Na época, eu ainda não tinha retificado meus documentos, e as pessoas claramente não estavam acostumadas a ver uma mulher trans tentando ser mãe.

A gente fala tanto de adoção homoafetiva, de família homoafetiva, mas ainda não fala em famílias transafetivas. Em outubro de 2015, eu saí do fórum com a documentação que dizia que eu e Roberto éramos os responsáveis pelo Gabriel. Detalhe: a juíza teve a sensibilidade de usar meu nome social nos documentos. Foi uma conquista dupla. Aquela foi a primeira vez que uma travesti saiu do fórum com seu marido e uma criança adotada por meios legais. Ali, eu me tornei mãe. Mas ainda faltavam duas crianças para minha família ficar completa. A gente não tinha pressa, queríamos curtir a chegada do Gabriel, mas sabíamos que queríamos mais filhos.

Em agosto do ano seguinte, meu telefone tocou. Era a Christiana Caribé, juíza da Vara da Infância e Juventude de Jaboatão dos Guararapes (PE). Ela tinha visto uma entrevista minha, na TV, dizendo que tinha o sonho de adotar uma criança trans, e me ligou porque tinha uma criança com características de ser uma menina trans na comarca dela. Perguntou: “Quer conhecê-la?”. Em duas semanas, compramos passagem e fizemos reserva num hotel. Nesse período, fizemos aproximação com ela por vídeo. A psicóloga do abrigo filmava a rotina dela e mandava para a gente, e nós filmamos a nossa rotina para ela conhecer. Fizemos imagens tomando café da manhã, levando o Gabriel para a escola, indo para indo para a igreja

Numa conversa por telefone, antes de eu conhecê-la pessoalmente, ela pediu: “Mainha, me traz roupa de menina?”. Ela não queria sair do abrigo vestida de menino. Pediu vestido, calcinha, sutiã. Tudo aquilo tinha sido negado para ela.

Em setembro, fomos para Jaboatão, e nosso encontro foi lindo. Quando eu desci do carro e vi aquele muro alto do abrigo, me deu a sensação de que ela ia nascer. Quando abriram a porta, ela veio correndo lá de dentro gritando “mainha, mainha”. A gente chorou muito, o pai também.

Perguntei para ela qual nome queria usar, e ela pediu que eu escolhesse, afinal, eu já era mãe dela. Eu sempre quis que minha primeira filha tivesse o nome da minha mãe, então escolhi Ana Maria.

Passamos pela audiência de guarda, e saímos do fórum com ela sendo a nossa filha. Nossa família, que já existia, estava ganhando mais cor, mais forma, mais sabor. Além disso, naquele dia, ela também teve o nome social reconhecido pela primeira vez, e os papéis da guarda foram impressos com nome Ana Maria Evangelista Salvador. Isso me deixa muito aliviada, porque ela vai viver uma realidade diferente da minha: não vai conhecer a transfobia do balcão, não vai ser chamada por um nome que não é o seu em voz alta, com todo mundo olhando. Em 2019, a gente viu a história se repetir: meu telefone tocou novamente, porque outra menina trans, de 7 anos, estava à espera de adoção em Santos

No mesmo dia, pegamos o carro e fomos até lá para conhecer a nossa terceira filha. Quando chegamos, ela já se apresentou como Dayse. Era uma menina. Uma semana depois, o juiz nos deu a guarda dela. Hoje, ela passa no ambulatório de crianças trans do Hospital das Clínicas de São Paulo, junto com a Ana

Família transafetiva Nós somos uma família como qualquer outra: a gente dá amor, educa, coloca no cantinho da reflexão quando um deles faz alguma coisa errada. Mas carregamos essa bandeira de ser uma família transfetiva. Depois da adoção da Ana, comecei a ouvir histórias de crianças que se encontram em situação de acolhimento pelo estado e são trans, de várias idades. Elas ainda são invisíveis, e não têm suas demandas atendidas, seus direitos garantidos. Tanto a Ana quanto a Dayse me contam algumas falas bastante transfóbicas que ouviam dentro dos abrigos, coisas como “você não é uma menina, e papai do céu castiga se você falar isso”.

Embora tenha feito a transição com quase 30 anos, eu fui uma criança trans sem saber, sem ser identificada dessa forma. Por isso, meu trabalho é garantir que as minhas filhas não passem pelo que eu passei. Sei que a Ana e a Dayse têm em mim um modelo e eu tento ser a melhor mãe possível para garantir que elas possam continuar crescendo com seus direitos garantidos, suas demandas atendidas, e, ao mesmo tempo, com experiências de qualquer outra criança ou adolescente

Ser pai e mãe não é simplesmente ser pai e mãe, tem que ter vocação. Não é fácil educar, e meus três filhos têm históricos de abandono e violência. Eles lembram de tudo isso. A Ana, por exemplo, conheceu vários casais que desistiram da adoção porque ela dizia que era uma menina, dava sinais de ser trans. Para além da rejeição da família genitora, ela foi rejeitada por outras famílias até ser adotada.

Mas uma criança trans é uma criança como qualquer outra. Toda criança, cisgênero ou trans, vai ter demandas particulares. Minhas filhas fazem acompanhamento no ambulatório trans, e minhas sobrinhas, por exemplo, fazem tratamento médico para a asma. Elas têm que tomar remédio e ir a consultas com determinada frequência, exatamente como as minhas filhas.

Todos os dias vejo notícias de adolescentes trans que são mortas, esfaqueadas. Nessas horas, abraço minhas filhas muito forte, e fico aliviada por saber que eu e meu marido conseguimos garantir que elas tenham uma vida plena, sem medo. A gente sabe que a maioria das meninas trans de 15 anos, como a Ana, não têm apoio da família e nem do estado, estão por aí, sozinhas, numa sociedade que quer nos ver mortas.

Eu digo às minhas filhas: “Vocês podem ser o que quiserem, mamãe e papai vão apoiar em tudo”.

Meu sonho é que os três cresçam com acesso à cidadania e direitos garantidos. Mas, acima de tudo, quero que os três sejam muito felizes, que vivam a vida de maneira leve, com as profissões que eles quiserem, com a família que eles decidirem formar.”.

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