Análise com dados de 5 milhões de pessoas mostra que, mesmo em pequenas doses, o consumo diário de bebidas alcoólicas não protege contra doenças cardiovasculares
Por muito tempo, prevaleceu a crença de que tomar uma ou duas doses de vinho diariamente faz bem ao coração. Mas, agora, um artigo com dados de 5 milhões de pessoas afirma que o hábito não protege contra enfermidades cardiovasculares nem ajuda a viver mais. Publicada na Revista da Associação Médica Norte-Americana (Jama), a pesquisa examinou 107 estudos epidemiológicos de grande porte que avaliaram a associação entre o consumo frequente de álcool e a mortalidade em geral. Para a decepção de quem acredita no potencial benéfico da bebida, a principal conclusão foi outra: “Menos álcool é melhor”, destaca Tim Naimi, autor do estudo e professor da Universidade de Vitória, no Canadá.
A análise não se concentrou apenas no vinho, mas em qualquer tipo de bebida consumida diariamente em níveis moderados — menos de 25g. Para comparação, uma dose de destilado tem 25g e uma taça de vinho de 90ml tem 10g, mesma quantidade de uma lata de cerveja. Segundo os autores, pesquisas antigas que atestavam benefícios do álcool não faziam ajustes de idade, sexo e estilo de vida, como prática de exercícios, tabagismo e dieta, o que pode distorcer os resultados. Agora, todos esses fatores foram calculados, garantindo, de acordo com os especialistas, um quadro mais acurado.
“A revisão dos 107 artigos envolvendo mais de 4,8 milhões de participantes não encontrou redução significativa na mortalidade por todas as causas para bebedores que ingeriam menos de 25g de etanol por dia”, destaca Naimi. “Agora, houve um crescimento significativo de aumento da mortalidade entre mulheres que ingeriam mais de 25g por dia e homens que bebiam 45g ou mais diariamente”, alerta. As descobertas vão ao encontro de um estudo de base genética, publicado no ano passado, que também apontava que qualquer consumo de álcool frequente faz mal à saúde.
Segundo Dennis Bruemmer, do Departamento de Cardiologia da Cleveland Clinic, nos Estados Unidos, a crença de que a ingestão moderada diária de vinho tinto faz bem ao coração baseia-se no chamado paradoxo francês. No país europeu, essa bebida é muito popular, com um adulto médio consumindo cerca de 47 l por ano (mais de 62 garrafas). Além disso, os franceses apresentam, no geral, baixas taxas de doenças cardiovasculares.
Porém, o cardiologista afirma que essa característica não é explicada pela bebida e, sim, porque, em comparação a países com mortalidade mais alta, há menos taxas de obesidade e diabetes tipo 2, menos sedentarismo e hábitos alimentares mais saudáveis, com preferência por dietas semelhantes à mediterrânea, porções menores e baixo consumo de fast-food. “Acredito que o paradoxo francês não é realmente explicado pelo consumo de álcool e vinho tinto tanto quanto por esses outros fatores”, afirma.
De fato, a casca das uvas usadas para a fabricação de vinho tinto tem um composto natural antioxidante chamado resveratrol que teria potencial de proteger contra doenças cardiovasculares. “O resveratrol ajuda a ativar uma enzima chamada telomerase, que protege a integridade do genoma”, explica Bruemmer. “E por causa disso, tem sido associado à prevenção de doenças cardiovasculares e, na verdade, ao prolongamento da longevidade.” Porém, boa parte das evidências foram obtidas em estudos laboratoriais, e não em humanos. Além disso, a quantidade necessária da substância para promover algum benefício teria de ser imensa. “Seria impossível conseguir isso com vinho tinto.”
Rosário Ortolá, pesquisadora de Medicina Preventiva e Saúde Pública da Universidade Autônoma de Madri, na Espanha, onde o consumo de vinho também é alto, diz que o artigo publicado na Jama demonstra que o consumo de álcool não deve ser recomendado para melhorar a saúde, mesmo em pequenas quantidades. “Deve ficar claro que, se você beber, quanto menos melhor”, aconselha.
“Já não há dúvidas de que o consumo excessivo de álcool é claramente prejudicial à saúde, mas persiste a controvérsia sobre os efeitos do consumo moderado, embora surjam cada vez mais estudos com metodologias mais rigorosas que não mostram benefícios em beber pequenas quantidades”, reforça Ortolá. “Os resultados desse novo estudo vão nessa linha, pois não encontram um menor risco de morte para o consumo baixo ou moderado, mas um risco maior para o alto consumo.” Além disso, nas mulheres, a vulnerabilidade começa a aumentar com menores quantidades de álcool, algo que já é conhecido e se reflete em limites de risco mais baixos do que para os homens, salienta.
Essas conclusões têm levado sociedades médicas a destacar, cada vez mais, o potencial maléfico do álcool. No ano passado, a Federação Mundial do Coração publicou um relatório sobre o impacto do consumo de álcool na saúde cardiovascular: mitos e medidas, que conclui: “Ao contrário da opinião popular, o álcool não é bom para o coração”. “Essas alegações são, na melhor das hipóteses, mal informadas e, na pior, uma tentativa da indústria do álcool de enganar o público sobre o perigo de seu produto”, disse Monika Arora, coautora do trabalho.