Pesquisa revelou um uso intensivo de aditivos em alimentos industrializados
Quando a nutricionista Vanessa Montera investigou a presença de aditivos em alimentos vendidos nos supermercados, levou um susto. Ela se surpreendeu com a variedade de aditivos em um só produto e o fato de que muitos servem apenas para mascarar características que seriam difíceis de engolir como cheiro, sabor ou textura. Seu estudo mostrou que os aditivos estão por toda parte no mercado: quatro em cada cinco dos quase 9,9 mil alimentos analisados tinham ao menos um aditivo entre os ingredientes. Um em cada quatro tinham seis ou mais.
O estudo de Montera foi o primeiro do tipo a ser feito nessa escala no Brasil. A nutricionista diz que, apesar de ser esperado que alimentos industrializados contenham aditivos — substâncias naturais ou sintéticas que são usadas para alterar as características de um produto — ela não imaginava que os encontraria nesse número. “Alguns alimentos são coquetéis de aditivos. Chegamos a encontrar um produto de panificação que tinha 35. Foi o recorde”.
Outra coisa que chamou sua atenção foi o uso intensivo dos aditivos cosméticos, como são chamados por uma parte dos profissionais da área aqueles aditivos que mudam o sabor, o aroma e a forma dos alimentos, embora essa classificação não seja oficialmente reconhecida por autoridades brasileiras.
Corantes, saborizantes, aromatizantes, emulsificantes, entre outros, garantem que alimentos que passaram por vários processos industriais na sua fabricação correspondam ao que os consumidores esperam deles. São usados porque esse processamento pode às vezes alterar os alimentos a ponto de deixá-los irreconhecíveis.
Diferentemente de outros aditivos, como os conservadores, por exemplo, os aditivos cosméticos não ajudam a fazer com que as comidas sejam mais baratas, durem mais tempo, cheguem a mais pessoas ou possam ser consumidas com mais segurança. Na prática, são o equivalente a uma maquiagem dos alimentos. “Não precisariam nem estar ali”, diz Montera.
Sua presença nos alimentos, principalmente quando são muito frequentes, funciona como um indicativo de que este alimento é ultraprocessado — e cada vez mais pesquisas associam esse tipo de comida a doenças.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) regula o uso dos aditivos em alimentos e estabelece os níveis máximos de consumo diário para uma pessoa. Mas alguns nutricionistas têm dúvidas se esses limites são realmente seguros, porque comemos cada vez mais alimentos ultraprocessados, que têm muitos aditivos. Eles destacam ainda evidências de que há aditivos que podem fazer mal à saúde — o que a indústria nega — e também de problemas na forma como esses ingredientes são informados nos rótulos. Por isso, defendem que as regras sejam revistas pela agência, e está previsto que isso ocorra em breve.
Outro questionamento vem da comparação desta pesquisa brasileira com um estudo semelhante na França, que apontou um uso substancialmente menor de aditivos por lá. Isso indicaria, de acordo com cientistas, que muitos produtos vendidos no Brasil são mais artificiais e de pior qualidade.
Aditivos alimentares – Eles modificam as características físicas, químicas, biológicas ou sensoriais do produto, durante sua fabricação, processamento, preparação, tratamento, embalagem, acondicionamento, armazenagem, transporte ou manipulação. Essas substâncias ajudam a garantir que podemos consumir um alimento sem riscos, por exemplo.
Embora bastante associados à alimentação moderna, eles não são uma novidade. Já eram usados em sociedades antigas, como o sal que é adicionado para preservar uma comida. O vinagre das conservas, o açúcar dos alimentos cristalizados e a fumaça da defumação são outros exemplos de aditivos bastante comuns.
Mas também se tornaram bem comuns aditivos sintéticos, que passaram a ser empregados pela indústria para produzir comida em larga escala e fazer com que ela chegue em boas condições para os consumidores.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o uso dos aditivos se justifica quando ele tem uma utilidade clara, como preservar o valor nutricional ou a estabilidade de um alimento, e não é usado para enganar o consumidor. Cientistas também apontam que seu uso excessivo pode ser problemático.
A nutricionista Vanessa Montera investigou em seu estudo como esses aditivos são usados pela indústria no Brasil. Esse trabalho foi sua tese de doutorado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e foi publicado no periódico Food and Function, da Sociedade Real de Química, do Reino Unido.
A nutricionista analisou uma base de dados elaborada pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor a partir da visita a dez lojas das cinco maiores redes de supermercado do país em duas cidades, Salvador e São Paulo.
Todos os produtos embalados tiveram seus rótulos fotografados. De 14 mil itens, foram excluídos os que estavam duplicados, as águas engarrafadas e aqueles que não tinham informações nutricionais nas embalagens. Restaram 9.856 alimentos, que foram divididos em 25 categorias. Em seguida, foram verificados os ingredientes de cada um deles. A cientista concluiu que 79,4% tinham ao menos um aditivo.
Mas isso conta apenas uma parte da história, porque a minoria (11,6%) tinha um aditivo só, enquanto 19,8% tinham dois ou três, 23,2% tinham quatro ou cinco e 24,8% — a maior parcela do total — tinham seis ou mais.
Os produtos com mais aditivos foram as bebidas de fruta saborizadas (com teor de suco abaixo de 30% e pós e concentrados para preparo de refrescos). Nesses produtos, em média, os aditivos representavam 79,7% do número total de ingredientes listados.
Também se destacaram refrigerantes (74,5%), outras bebidas (57,3%) — tais como aquelas à base de soja, chás prontos para consumo, bebidas para desportistas, leite de coco —, produtos lácteos não adoçados (51,1%), néctares (49,7%), produtos lácteos adoçados (45,6%) e doces e sobremesas (45,4%).
Entre os cinco aditivos mais usados, quatro eram do tipo cosmético — a exceção foram os conservadores, que fazem com que os alimentos durem mais tempo. Os aromatizantes, que dão cheiro a um produto, foram de longe o aditivo mais comum. Estavam em 47,1% dos produtos. Depois, vieram os conservadores (28,9%), os corantes (27,8%; conferem cor à comida), os estabilizantes (27,6%; mantêm a dispersão de componentes) e os emulsificantes (19,4%; mantêm uma mistura).
“Os conservadores têm um propósito, porque a indústria precisa fazer com que esses produtos possam ficar mais tempo na prateleira, mas os aditivos cosméticos só servem para deixar o pão mais fofinho, fazer o iogurte ficar rosa, deixar o creme de leite mais branco. Seu único propósito é tornar o produto mais atraente para o consumidor e, por isso, não são estritamente necessários”, avalia Montera.
A nutricionista argumenta que sua pesquisa mostra que a indústria de alimentos está pesando a mão no uso desses ingredientes. “Tinha um produto que tinha um umectante [que previne a perda de umidade] e um antiumectante [que impede a absorção de umidade]. Qual é o sentido disso?”, questiona.
A principal preocupação é com o impacto no corpo que o consumo desses aditivos causa, dizem os nutricionistas. O Ministério da Saúde se negou a comentar o assunto e disse à BBC News Brasil que caberia à Anvisa tratar do tema.
A agência afirmou por sua vez, em comunicado, que analisa os riscos envolvidos no consumo de aditivos e determina quais são permitidos e seus limites máximos, para que a indústria possa tirar proveito deles sem prejudicar os consumidores.
As substâncias são avaliadas caso a caso, segundo a Anvisa, e o fabricante precisa comprovar que elas são seguras, necessárias e que o consumo médio esperado não traz perigos. A agência disse ainda que segue as regras e recomendações da OMS, da Organização para Alimentação e Agricultura, e o que é praticado na União Europeia e nos Estados Unidos. Mas nutricionistas acreditam que a Anvisa pode (e deve) fazer melhor.
Um dos problemas apontados é que os limites diários determinados pela agência levam em conta a ingestão de um aditivo individualmente e determinam o quanto pode ser usado em um único produto. Mas isso seria colocado em xeque pelo aumento em todo o mundo, medido por diversas pesquisas, do consumo de produtos ultraprocessados, que contêm muitos aditivos. Isso significa que, na prática, não é difícil alguém consumir mais de um alimento que contém o mesmo aditivo e ir além do limite considerado seguro.
Também não seria levado em consideração nas regras atuais que esses aditivos são consumidos muitas vezes de forma combinada. Como a pesquisa de Vanessa Montera mostra, é comum que alimentos tenham vários aditivos.
Por fim, a lei brasileira não exige que o rótulo informe a quantidade de aditivos usada em cada produto, explica Daniela Canella, pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens-USP).
“Não temos como saber o quanto estamos comendo. A indústria diz que isso é segredo industrial e que não revela para que os concorrentes copiem seus produtos, mas isso significa que a gente desconhece o quanto a gente consome de aditivo no Brasil”, diz Canella, que também é professora da Uerj e orientou Montera em sua pesquisa de doutorado.
A Ciência ainda é inconclusiva sobre se os aditivos causam ou não prejuízos à saúde. Há estudos que apontam indícios de que seu consumo por pode estar ligado a distúrbios de comportamento, transtornos mentais, alergias, alterações no metabolismo do corpo, obesidade e câncer.
Existe ainda a preocupação com o fato de os ultraprocessados acostumarem nosso paladar a um excesso de certos ingredientes, como sódio e açúcar, tornando mais difícil adquirir o gosto pelos alimentos in natura, que são fontes de nutrientes. A indústria de alimentos diz que os aditivos são importantes para garantir a segurança e o valor nutricional dos alimentos e que não há por que se preocupar.
A Associação Brasileira da Indústria e Comércio de Ingredientes e Aditivos para Alimentos disse à BBC News Brasil que o número de aditivos na composição de um produto “não tem nenhuma relação” com o alimento ser saudável ou não.
“A quantidade máxima permitida leva em conta a interação entre os aditivos em todas as categorias de alimentos, bem como a ingestão diária aceitável, com base no perfil alimentar da população brasileira”, declarou a entidade. Por sua vez, a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos disse à reportagem que os aditivos são usados em “pouquíssimas quantidades” e controlados rigorosamente. “Não há evidências que demonstrem que a combinação de aditivos num mesmo alimento possa oferecer riscos à saúde humana”, afirmou a associação. Um dos motivos é que essas pesquisas quase não são feitas, argumenta Daniela Canella.
“Não há estudos no Brasil e existem pouquíssimos no mundo que analisam os aditivos somados, isso normalmente é feito com cada um deles sozinho. É possível que o efeito cumulativo deles não seja seguro”, afirma a nutricionista.
Vanessa Montera aponta outros problemas. De acordo com a pesquisadora, a maioria das pesquisas, que são feitas pela própria indústria, analisam apenas se os aditivos são tóxicos ou causam mutações nas células e não investigam os prejuízos que podem causar ao metabolismo, ou seja, ao funcionamento do corpo.
“Tem alguns estudos que apontam efeitos preocupantes, mas realmente não é nada que nos faça bater o martelo. Mas, ainda assim, deveria ser adotado o princípio da precaução, porque, da mesma forma que não dá pra dizer com 100% de certeza que são prejudiciais, também não dá pra garantir que não são”, diz a cientista. Além disso, os estudos são realizados majoritariamente em animais, explicam os especialistas. Não seria ético fazer pesquisas dos efeitos em humanos, dando aditivos às pessoas para ver o que acontece.
A saída, explica Canella, é fazer os chamados estudos observacionais, em que se acompanha um grupo de pessoas por um tempo e se analisam seus hábitos e estilo de vida e os problemas de saúde para ver se há alguma correlação. “É difícil fazer estudos assim porque sempre pode ter havido outra influência. Pode ter sido a poluição, e não o aditivo, que causou uma doença, por exemplo. Por isso, o nível de evidências nunca vai ser o ideal, o que é uma maravilha para a indústria, que sempre vai poder dizer que não dá pra estabelecer uma relação de causa e consequência, e é verdade”, diz a pesquisadora da USP.
A pesquisa com 126 mil produtos alimentícios disponíveis nos supermercados franceses apontou que 53,8% tinham aditivos e 11,3% tinham cinco ou mais aditivos — bem abaixo dos índices encontrados no estudo brasileiro. “Isso mostra que talvez a qualidade dos alimentos que estão sendo oferecidos aqui é pior do que a dos alimentos de lá”, diz Montera.
A nutricionista afirma ainda que, se a amostra do estudo nacional fosse tão grande quanto a da pesquisa francesa, os resultados poderiam ser ainda piores. “A Europa tem um controle maior sobre o uso de alguns aditivos alimentares”, explica Montera.
Ter mais aditivos é sinal de pior qualidade porque essas substâncias são usadas muitas vezes para substituir ingredientes naturais. Em tese, por exemplo, uma empresa poderia usar morangos de verdade para deixar o iogurte rosa, mas morangos são mais caros do que um corante. Os aditivos também servem para “maquiar” os produtos ultraprocessados, diz Canella, tornando seu aspecto, textura e gosto aceitáveis.
A nutricionista defende que cabe ao governo brasileiro exigir padrões de qualidade melhores das fabricantes de alimentos. “Os países têm legislações mais e menos rigorosas. Se em um lugar você pode usar matéria-prima de pior qualidade, esse país se torna um refugo da indústria. Se dá pra produzir mais barato e a legislação não barra, por que uma empresa vai ter mais despesa e menos lucro?”, questiona Canella.
Também seria bom que os rótulos informassem melhor sobre esses ingredientes, indicando sua quantidade, por exemplo, acrescenta Montera. O Brasil terá uma oportunidade de aprimorar suas regras para os aditivos. Está prevista na agenda da Anvisa para o período entre 2021 e 2023 a modernização das regras e procedimentos para autorização do uso dos aditivos em alimentos.