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sábado, 20 abril, 2024

Um novo rótulo para o fundador das Casas Bahia: pedófilo

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Falecido em 2014, empresário teria mantido esquema de aliciamento de crianças e adolescentes para a exploração sexual dentro da sede da empresa, em São Caetano do Sul

Uma história de violência sexual na infância marcou para sempre a trajetória de Karina Lopes Carvalhal, hoje com 40 anos. Aos 9, ela soube pelas irmãs que um grande empresário de sua cidade, São Caetano do Sul, dava dinheiro e presentes a crianças e adolescentes que fossem à sede da empresa na avenida Conde Francisco Matarazzo, 100. À época com 12 anos, a irmã mais velha de Karina avisou que poderia conseguir um tênis novo se fosse até lá.

Karina subiu até o andar da presidência e esperou até ser chamada ao escritório particular do dono. Ficou surpresa ao ver um senhor, já na casa dos 70 anos. “Minha irmã tinha me dito: Ká, não se assuste porque ele vai te dar um beijinho. Mas ele me cumprimentou e já passou a mão nos meus peitos. Ele dizia: Ah, que moça bonita. Muito linda, relembra, imitando o sotaque polonês do empresário Samuel Klein, fundador da Casas Bahia, uma grande rede do varejo brasileiro. Ela saiu levando consigo uma quantia em dinheiro e um tênis da marca Bical. Era 1989.

“A gente ficava contente que tinha ganhado um tênis. Não tínhamos noção dessa situação de violência”, afirma Karina ao falar à Agência Pública. A possibilidade de conseguir outros bens materiais a fez voltar nas semanas seguintes. “A segunda vez, ele já me levou pro quartinho”. Ela conta que o empresário mantinha um quarto anexo ao seu escritório, onde havia uma cama hospitalar. Era ali, segundo ela, que ocorriam os abusos. Karina não teria sido a única a ser aliciada e explorada sexualmente por Samuel Klein. A Pública ouviu mais de 35 fontes, entre mulheres que o acusam de crimes sexuais, advogados e ex-funcionários da Casas Bahia e da família.

A reportagem, que pode ser lida na íntegra no site da Agência Pública, consultou também processos judiciais e inquéritos policiais e teve acesso a documentos, fotos, vídeos de festas com conotação sexual e declarações de próprio punho das denunciantes, além de gravações em áudio que indicam que, ao menos entre o início de 1989 e 2010, Samuel Klein teria sustentado uma rotina de exploração sexual de meninas entre 9 e 17 anos na própria sede da Casas Bahia, em São Caetano do Sul, e em imóveis de sua propriedade situados na Baixada Santista e emAngra dos Reis, no Rio de Janeiro.

O empresário teria organizado um esquema de recrutamento e transporte de meninas, com uso de seus helicópteros particulares, até mesmo com a participação de funcionários na organização de festas e orgias, pagas com dinheiro e produtos de suas lojas. A partir das denúncias mais recentes envolvendo o filho do patriarca da família Klein, o empresário Saul Klein, investigado pelo Ministério Público do Estado São Paulo por aliciamento e estupro de dezenas de mulheres, a reportagem foi atrás do passado de Samuel e encontrou histórias semelhantes às práticas descritas pelo MP-SP na investigação sobre seu filho.

Samuel Klein morreu em 2014, deixando uma imagem quase heroica. Nascido na Polônia em 1923, perdeu a família em um campo de concentração. Emigrou para o Brasil na década de 1950, quando começou a vender produtos em uma charrete. Anos mais tarde, fundou a Casas Bahia, hoje parte do conglomerado Via Varejo, com faturamento médio anual de 30 bilhões de reais.

Mas o rei do varejo, como ficou conhecido, foi acusado por diversas mulheres de praticar abusos sexuais e de exploração de crianças e adolescentes. Um desses casos é o de Renata, que afirma, em processo ao qual a Pública teve acesso, ter sido estuprada pelo empresário quando tinha 16 anos. Renata contou à polícia que em outubro de 2008 foi à casa de praia do empresário em Angra dos Reis. “Ele me pegou à força, rasgou minha roupa e me violentou. Não adiantava gritar”, diz um trecho do depoimento. Na época, Samuel Klein reconheceu, em depoimento à Polícia Civil de São Paulo, que Renata e sua colega estiveram na casa dele em Angra dos Reis, mas disse que as moças não eram menores de idade. Renata não quis dar entrevista. A Pública buscou, ao longo dos últimos meses, contato com 26 mulheres que moveram processos judiciais, além de outras que não o processaram. Dez mulheres concederam entrevistas, a maioria pediu para não revelar a identidade por medo de retaliação. Três entrevistadas, porém, concordaram em ter seu nome divulgados. Segundo os relatos, após um primeiro contato, que frequentemente já incluía abusos sexuais, mulheres e meninas eram selecionadas para participar de festas do empresário nas suas propriedades, como os apartamentos em São Paulo, no edifício Universo Palace, em Santos, na Ilha Porchat, em São Vicente, uma casa em frente à praia da Enseada, no Guarujá, além da mansão no Condomínio Porto Bracuhy, em Angra dos Reis. As adolescentes geralmente eram aliciadas em bairros de baixa renda do entorno de suas propriedades e também vinham de vários Estados. Uma das mulheres contou que, ainda adolescente, viajou várias vezes para a mansão e disponibilizou à Pública fotos das viagens. Ela aparece abraçada ao empresário em frente ao helicóptero Agusta A09 Power, pousado em Angra, em 1999. Segundo o registro da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), o helicóptero fotografado havia sido registrado em nome da Casas Bahia em 1998. Cláudia tinha 20 anos quando participou pela primeira vez de um jantar com Samuel na sede da Casas Bahia, em São Caetano do Sul, em 2008. “Disseram que eu ia jantar e fazer companhia, carinho nele”, conta. Assim como outras vítimas relataram, o encontro teria ocorrido no andar da presidência da loja, e ela contou que foi orientada a dizer que tinha 17 anos para atender o estilo de Samuel, que gostava mais de menininha. “Ele gostava de meninas com o corpo menos evoluído, que era meu caso”, contou ela.

Funcionários da Casas Bahia confirmaram os frequentes pagamentos em dinheiro e produtos às chamadas samuquetes, como eram apelidadas as “meninas do Samuel” — depoimentos confirmando a situação constam, inclusive, em condenações na Justiça do Trabalho. Josilene, que foi gerente numa loja da Casas Bahia na Vila Diva, zona leste de São Paulo, entre 2005 e 2008, contou que tanto Samuel quanto Saul Klein usavam o caixa das lojas como parte dos pagamentos dessas meninas e mulheres. Segundo ela, “as meninas tinham direito de escolher o que elas queriam na loja. Na época, como era menina nova, pegava muito celular, som, televisão”. Em 2010, a Casas Bahia foi condenada em diversas ações trabalhistas. Em sete delas, os funcionários alegaram danos morais em razão de situações vexatórias vividas no trabalho. Eles descrevem que frequentemente tinham que pagar mulheres que apareciam nas lojas cobrando dinheiro e mercadoria e que, geralmente, traziam bilhetes com a letra de Samuel ordenando pagamentos. “Parece que ele vivia para isso. Ele recebia meninas várias vezes por semana, o mês inteiro”, conta um segurança que trabalhou para a família Klein por 19 anos. Os relatos das mulheres e de alguns ex-funcionários apontam para Lúcia Amélia Inácio, secretária pessoal que trabalhava na sede da Casas Bahia, como uma das principais organizadoras do suposto esquema. Lúcia é citada na biografia autorizada do empresário, escrita por Elias Awad, como “fiel enfermeira e responsável pelo departamento de benefícios” da Casas Bahia. No relato das entrevistadas e de ex-funcionários, Lúcia é apontada como a responsável por convidar as meninas escolhidas por Samuel para as viagens, fazer pagamentos e doações de cestas básicas a mulheres e familiares e até participar de algumas das festas promovidas nos imóveis de Samuel. Depois de várias tentativas, a reportagem não conseguiu contato com Lúcia. Os depoimentos de ao menos seis mulheres mencionam também Káthia Lemos como uma aliciadora de meninas do empresário. Ela aparece em fotos no iate e na piscina da casa de Samuel em Angra dos Reis e em um vídeo de uma festa de aniversário do empresário, que ocorreu em 11 de novembro de 1994 em uma casa em Guarujá. “Eu só posso agradecer especialmente a vocês três (indicando Káthia e outros dois seguranças) por fazer essa festa maravilhosa para 150 amigas minhas”, discursa Samuel na gravação. Em conversa com a reportagem, Káthia negou que fizesse agenciamento de mulheres e meninas. Ela disse conhecer mais de 100 mulheres, de vários estados brasileiros, que frequentavam os encontros com o empresário, mas nega que houvesse menores de idade. “Algumas mentiam a idade dizendo ter 18 anos para agradá-lo. Era a fantasia dele”. As entrevistas sugerem que Samuel aproveitava a situação vulnerável de famílias empobrecidas e se colocava como benfeitor, criando uma lógica que, ao misturar abusos e recompensas financeiras, prendia as vítimas ao esquema criminoso. Itamar Gonçalves, gerente da Childhood, organização que atua na proteção à infância e à adolescência, explica que meninas exploradas sexualmente podem acabar introduzindo outras nos esquemas criminosos. “São estimuladas a trazerem a irmã, parentes, amigas e amigos para aumentar os ganhos”, explica. Nesses casos, as vítimas não podem ser responsabilizadas. “O papel do aliciador é do adulto que está se aproveitando da situação. Infelizmente, porque temos uma Justiça machista, a atuação de um adulto que se beneficia e/ou articula esse tipo de situação é muitas vezes normalizada”. A pobreza e a vulnerabilidade social são os principais fatores que levam crianças e adolescentes para esquemas de exploração sexual, segundo a socióloga Graça Gadelha, especialista em direitos infantojuvenis. “Existem ainda questões culturais, de contextos sociofamiliares, de situações de abandono — inclusive por parte de políticas públicas. São vários aspectos que confluem para a entrada precoce de meninos e meninas em situações de violência sexual, analisa. Discursos morais, preconceitos, machismo e falta de acolhimento silenciam vítimas de violência sexual, que muitas vezes são culpabilizadas enquanto seus agressores seguem impunes”, diz Graça. Na Justiça, nenhum procedimento para a responsabilização de Samuel Klein prosperou. Jorge Alexandre Calazans, advogado que representou quatro vítimas, conta que estabeleceu acordos entre os advogados do empresário e as mulheres que o procuraram. “O acordo foi feito rapidamente, elas receberam o dinheiro e extinguiram o processo de indenização que tinham aberto”, conta. Outro advogado ouvido pela reportagem afirmou ter fechado um acordo judicial, com pacto de confidencialidade, com seis mulheres que alegaram abusos de Klein, todas menores de idade na época dos fatos. Já o escritório Aquino Ribeiro Advogados & Associados, localizado em Santos, representou seis casos de mulheres que teriam sido abusadas sexualmente por Klein no final da década de 1990. Os advogados do escritório receberam as denúncias apenas em 2011. Cinco dos seis casos levados à Justiça pelo escritório tiveram a prescrição reconhecida porque, naquele momento, o prazo prescricional de 20 anos começava a correr a partir da maioridade da vítima. Mas, como o empresário tinha mais de 70 anos quando as mulheres foram em busca de reparação, o tempo para viabilizar o processo caiu pela metade, dez anos. “Na cabeça da vítima, ela ainda fica pensando que ela pode ser culpada. Ela leva um tempo achando que a agressão, que o que ela passou, é culpa dela. Era isso que a gente queria: que ao menos tivesse uma perícia, um psicólogo ou psiquiatra que pudesse aferir por quais motivos elas não entraram na época com ação”, argumenta o advogado Antônio Sérgio de Aquino, que representa essas mulheres. Desses casos, apenas um ainda corre na Justiça, que aguarda análise dos recursos pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Além de fotos das adolescentes nas propriedades de Klein e relatos de próprio punho das mulheres, os advogados instruíram os processos com base em um inquérito policial aberto contra Samuel Klein em 2006 — o que mais avançou em termos investigatórios. A análise do inquérito traz a história de Bianca, que relatou ter sido vítima de abusos sexuais e estupros cometidos por Samuel Klein quando tinha 13 anos, em 2001. O caso foi denunciado por ela em abril de 2006 ao Conselho Tutelar de Campina Grande, na Paraíba, onde passou a morar com sua mãe.
Em uma carta escrita de próprio punho, ela relata que o empresário tentava acariciar e “forçar de forma horrorizante”. “Estou aqui para denunciá-lo para que isso não venha acontecer com as demais jovens, que passaram e estão passando por isso e não tem coragem de fazer a denúncia, por medo e por constrangimento, igual eu tive”, escreveu.

Em 2011, o juiz Valdir Ricardo, da 1ª Vara de Justiça de Guarujá, julgou extinta a punibilidade de Samuel Klein no caso de Bianca e determinou o arquivamento do inquérito contra o empresário. No caso, há o registro de uma tática recorrente da defesa de Klein: evitar a intimação, até o esgotamento do prazo para as oitivas, que é o momento em que o ofendido pode ser ouvido no curso do inquérito. A mesma estratégia foi observada no processo de Francielle Wolff Reis. Aos 14 anos, em 2008, ela foi convidada por uma conhecida para visitar o fundador da Casas Bahia. Conforme o relato, o empresário prometeu dinheiro se ela praticasse sexo com ele, à época com 85 anos.

Por um ano e meio, a menina teria frequentado o escritório de Samuel de duas a três vezes por semana. Em 2013, ela entrou com uma ação de indenização por danos morais contra Samuel. O processo de Francielle patinou por anos e o empresário faleceu sem ao menos ter sido citado pela Justiça. Em 2017, três anos após a morte do rei do varejo, uma oficial de justiça conseguiu enfim citar o herdeiro de Samuel, o filho mais velho, Michael Klein. A ação ainda tramita na Justiça. Em fevereiro de 2021, a juíza do caso negou a indenização pedida por Francielle. Ela acatou os argumentos da defesa, de que Klein estava acamado desde 2006, estando impossibilitado de praticar os abusos denunciados.

Em março, os advogados de Francielle recorreram. O processo está em vias de ser analisado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Samuel Klein foi investigado também em um inquérito aberto em outubro de 2008 na Delegacia de Defesa da Mulher, em Santos. O caso virou uma ação penal que tramitou na 1ª Vara Criminal da cidade, e Samuel foi investigado por crimes previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente. O caso foi arquivado devido à morte do empresário, seis anos mais tarde.

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