Toda vez que se fala em impeachment se lembra de Collor e Dilma, os dois presidentes que já sofreram esse processo no Brasil. Mas teve um papa que ganhou um processo macabro
Presidentes de república são constantes alvos de pedidos de impeachment. No Brasil, dois deles foram para casa mais cedo por causa disso – Fernando Collor de Mello e Dilma Roussef. Mas, para entender essa história é precivo voltar quase dois mil anos, quando a Igreja Ocidental estava em crise, devido à acirrada disputa entre Roma e Constantinopla, que não se entendiam e queriam chefiar a igreja totalmente.
Ondas de imigrantes se instalaram onde hoje estão Hungria e Bulgária, aumentando as tensões entre Constantinopla e Roma, que disputavam a soberania sobre uma população que passava por mudanças e com lealdades variadas. Esses conflitos levantaram questões importantes sobre as qualidades exigidas dos líderes da cristandade. Durante este período, o equivalente medieval do impeachment foi usado com bastante frequência.
Foi um sínodo eclesiástico realizado em Roma, no qual o titular do mais alto cargo da cristandade poderia ser julgado por transgressões às tradições e costumes de seu cargo. Um desses sínodos aconteceu em janeiro de 897 e nele foi julgado o então pontífice Formoso (que foi papa entre 891 e 896). O problema é que Formoso já estava morto há sete meses quando o julgamento começou.
Mas o novo papa, Estevão 6º, tinha a firme opinião de que, mesmo quando os líderes deixassem o cargo, eles poderiam ser punidos por suas infrações. O sínodo foi realizado em circunstâncias um tanto sombrias. O papa Estevão 6º ordenou que o cadáver de Formoso fosse removido de seu sarcófago e levado à Basílica de São João de Latrão, em Roma, para ser julgado.
O cadáver foi adornado com adereços papais e colocado em um trono para enfrentar as acusações de que Formoso havia quebrado as regras da Igreja. Um diácono estava presente para responder em nome de Formoso. Estevão 6º acusou o cadáver de quebrar o juramento de não retornar a Roma e de ter obtido ilegalmente o título de papa por já ser bispo na época em que foi eleito.
Os supostos crimes ocorreram muito antes do julgamento. Em julho de 876, Formoso foi excomungado por se intrometer na política das potências europeias e proibido de celebrar missa pelo papa João 8º. Mas, depois da morte deste último, a sentença de excomunhão foi retirada pelo sucessor de João 8º, Marinho 1º, em 878, e Formoso voltou ao seu posto de bispo do Porto. Apesar de ter manchado seu histórico, Formoso foi eleito papa em 1º de outubro de 891 e imediatamente envolveu-se novamente na política.
Na Itália, encorajou a insurreição, persuadindo Arnulf da Caríntia a avançar em direção a Roma e expulsar o imperador reinante. Arnulfo tomou Roma à força em 21 de fevereiro de 896, mas seu sucesso durou pouco, pois antes que tivesse a chance de avançar contra a fortaleza de seu adversário em Spoleto, ele ficou paralisado e não conseguiu continuar a campanha. A paralisia, aliás, era considerada um castigo divino na Idade Média. É importante lembrar que essa foi uma época em que o papado mudou de mãos em um ritmo alarmante: quase todos os anos entre 896 e 904 havia um novo papa, às vezes até dois.
Formoso foi sucedido por Bonifácio 6º, que morreu duas semanas depois. Estêvão 6º foi o próximo a ocupar o trono papal. Ele havia sido um apoiador de Formoso, mas mudou de lado e agora estava alinhado com a família Spoleto, todo-poderosa em Roma. Sem surpresa, Estêvão 6º considerou Formoso culpado porque ele não poderia receber legalmente o título papal, já que ele era o bispo de outra sé e havia retirado seu juramento de não celebrar a missa.
Todas as suas medidas, atos e decisões judiciais foram anuladas, bem como suas ordens sacerdotais, que foram declaradas inválidas. Suas vestes papais foram arrancadas de seu corpo. Os três dedos que o papa morto usara nas consagrações foram cortados de sua mão direita e o cadáver, enterrado em um túmulo no cemitério destinado a indigentes, apenas para ser removido após alguns dias e jogado no rio Tibre. Curiosamente, após a morte de Estêvão 6º, Formoso foi reabilitado e seu papado restaurado pela Igreja.