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sábado, 23 novembro, 2024

O muito de inútil que se faz durante a pandemia

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Provas do contágio através de superfícies e a utilidade das nebulizações estão sendo questionadas, mas muitos recursos ainda são gastos em medidas que oferecem uma falsa sensação de segurança

O governo dos Estados Unidos decidiu fumigar a Casa Branca depois da saída de Donald Trump. Assim, horas antes de Joe Biden entrar na residência presidencial, uma equipe de funcionários se dedicou a aspergir desinfetante em todos os cômodos. Na semana passada, os britânicos viram seu primeiro-ministro, Boris Johnson, empenhar-se a fundo em limpar o assento de uma cadeira. Um ano depois de um novo coronavírus deixar o mundo de joelhos, muitas são as medidas tomadas só para agradar à plateia. É o teatro da pandemia, como definiu em abril de 2020 a pesquisadora Zeynep Tufekci num artigo em que criticava ações inúteis e até contraproducentes, como fechar parques.

Naquelas primeiras semanas de crise sanitária, as provas científicas ainda estavam começando a ser reunidas. Algumas eram contraditórias. Escandalizavam as fotos de famílias em jardins e passeios, os lugares mais seguros. Circulavam pelos celulares tabelas detalhando quanto tempo o coronavírus seria capaz de aguentar em determinadas superfícies.

Recomendava-se limpar os sapatos, as compras e inclusive a roupa ao voltar da rua. Mas já faz meses que sabemos que não é necessário tanto esforço. “Eu deixei de ver evidências convincentes faz muito tempo, e deixei de fazer isso”, conta a virologista Margarita del Val sobre o empenho em esfregar tudo que vem da rua. As possibilidades de contágio por superfícies ―ou fômites, no jargão médico― são escassas.

O Centro Europeu de Controle de Doenças faz o seguinte esclarecimento: “Considera-se possível ―embora até o momento não tenha sido documentada― a transmissão através de fômites”. Os CDCs, seu equivalente norte-americano, informam que “não se acredita que a propagação através do contato com superfícies poluídas seja uma forma comum de propagação da covid-19”.

Mais de 100 milhões de contágios depois, não há como provar que alguém tenha sido infectado ao tocar uma superfície contaminada. “Depois de um ano de pandemia, as provas atualmente são claras. O coronavírus SARS-CoV-2 se transmite predominantemente através do ar, por pessoas que falam e exalam gotas grandes e pequenas partículas chamadas aerossóis”, concluiu a revista científica Nature em um editorial.

O mesmo texto lamentava que algumas autoridades insistam na desinfecção permanente de superfícies: “O resultado é uma mensagem pública confusa, quando é necessário um guia claro sobre como priorizar os esforços para prevenir a propagação do vírus”. Isso não significa que deixaremos de lavar as mãos e usar álcool em gel nas lojas, porque o contato direto é uma via possível de contágio. Mas não é necessário concentrar esforços em desinfetar embalagens de leite ou paredes de edifícios que ninguém tocará.

Del Val, diretora da plataforma do CSIC (agência científica espanhola) para a Covid, se concentra na vertente psicológica do problema: “Muita gente tem como seguir no máximo duas medidas em seu cotidiano, sendo que uma é usar máscara, e a outra é limpar tudo ou manter distância, e não nos cabe ventilar mais do que isso”. Elvis García, sanitarista da Universidade Harvard, considera que o problema com o teatro da higiene é que “é fácil de entender, intuitivo e fácil de atacar”. E acrescenta: “A questão das partículas e das máscaras é mais difícil de entender”.

Já em suas recomendações de março de 2020, o ECDC só aconselhava limpar pontos especialmente manuseados, como maçanetas, interruptores, corrimãos e botões de elevador, enquanto nas ruas da Espanha o Exército já fumigava bancos e calçadas ao ar livre. A cientista Teresa Moreno, do IDAEA (Instituto de Avaliação Ambiental e Pesquisa Hídrica, na sigla em inglês, um órgão do CSIC espanhol), analisou a presença do coronavírus nas barras e botões do metrô e dos ônibus de Barcelona nos meses de maio e junho.

“Naquele momento, as pessoas achavam que o contágio se dava mais por superfícies”, recorda. O mesmo trabalho também colheu amostras do ar, o que é a sua especialidade. Os pesquisadores encontraram traços do vírus em ambos os elementos, mas se tratava de fragmentos sem capacidade de contágio. “No ar encontramos níveis baixos, e era de quando as pessoas não usavam máscara, por isso não parece um foco de infecção; eu uso o transporte público e não sinto que esteja em um lugar perigoso”, observa Moreno.

O mais interessante é que havia veículos que a empresa pública de transportes de Barcelona limpava com água sanitária, enquanto outros eram fumigados com ozônio. Os desinfetados com um pano e água sanitária ficavam livres de rastros do vírus, o que não era o caso dos ônibus vaporizados. “Vimos que com os canhões de ozônio era muito difícil que se espalhasse por todo o veículo. Em concentrações baixas, o ozônio não faz nada, continuávamos encontrando traços. E em concentrações altíssimas ele não é viável, porque é muito tóxico”, diz a cientista. “Estou preocupada com os artefatos que estão sendo oferecidos agora, porque são muito tóxicos, reagem com os materiais e prejudicam a saúde”, adverte. Del Val explica: “Não está nada claro que funcionem, e em todo caso é preciso ventilar ao acabar, pela toxicidade para as mucosas: então ventile bem e já está tudo certo”.

As autoridades sanitárias são claras nesse aspecto. O ECDC assinala que “a pulverização [também denominada fumigação] de desinfetantes ao ar livre ou em grandes superfícies interiores (auditórios, salas de aula e edifícios), assim como o uso de radiação de luz ultravioleta, não é recomendada para a população devido à falta de eficácia, possíveis danos ambientais e a possível exposição dos seres humanos a produtos químicos irritantes”. A Organização Mundial da Saúde (OMS) também se opõe claramente ao uso de sprays, por serem inúteis e perigosos, em ambientes e também em pessoas ―como nos túneis de lavagem que nebulizam produtos antes do acesso a determinados ambientes.

Em um site dedicado a desmentir mitos da pandemia, a OMS também esclarece que as possibilidades de contágio pelos sapatos é muito baixa e que o uso de termômetros rápidos não servem para detectar doentes de Covid, porque muitos não apresentam febre e mesmo assim são contagiosos. “A pistola para medir a temperatura não faz muito sentido. No ebola sim, porque você só contagia se tiver febre, mas neste caso a relação custo-benefício é só para a plateia”, afirma García. E reclama: “O importante não é ter termômetros para os viajantes, e sim uma quarentena de 10 dias”. Além disso, o ECDC desaconselha o uso de luvas porque “não conferem um benefício adicional e podem provocar uma higiene de mãos inadequada e uma maior contaminação das superfícies”.

De novo, são decisões teatrais que podem dar uma falsa sensação de segurança para quem entra num edifício com capachos, arcos pulverizadores e assistentes com termômetros. O epidemiologista Miguel Hernán, de Harvard, critica outros teatros pandêmicos que continuam sendo representados, como “o teatro de impor distância de segurança, que não é controlada, em bares mal ventilados, como se não existisse contágio por aerossóis quando se fala em voz alta, porque a música impede de ser ouvido”. Ou o “teatro de recomendar teletrabalho em vez de regulá-lo por lei para todos os postos em que for possível”.

García aponta outras questões que também lhe parecem representações sem substância: “Há medidas importantes que não quiseram tomar e se inventaram coisas em troca, como os hospitais de pandemias, os fechamentos perimetrais quando a incidência está igualmente disparada em todos os bairros, as discussões sobre o toque de recolher em estabelecimentos que teriam que ser fechados, vestir trabalhadores como astronautas para alguma coisa. São coisas intuitivas, embora não façam sentido”, diz. E aponta um último aspecto que tem grande impacto visual e psicológico: as ondas de contágios. “É uma construção que torna as pessoas predispostas a que o vírus venha. Para os governos é bom, porque assumimos que é algo inevitável que simplesmente acontece. Quando enfrentamos uma epidemia, é preciso ir a fundo para acabar com ela, não usar essa linguagem teatral das ondas”, critica.

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