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sexta-feira, 29 março, 2024

Erika transformou o pornô em revolução feminista

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Diretora e produtora sueca Erika Lust tornou-se referência em pornografia feminista e alternativa, transformando tudo num império comercial

Na América, Ásia ou Europa, as pessoas se comunicam em centenas de línguas distintas, suas culinárias usam ingredientes diferentes e até se amam ou se odeiam por sentimentos tão únicos quanto os seus. Mas é muito provável que a maioria dos adultos tenha em comum o fato de terem visto pela menos uma vez na vida alguma imagem pornográfica.

Ao mesmo tempo, poucas manifestações culturais geraram reações tão mistas em relação ao que a Real Academia Espanhola, instituição cultural dedicada à regularização linguística do mundo de língua espanhola, descreve como a apresentação aberta e crua do sexo que busca produzir excitação. Na linha milenar e acidentada da história humana, a pornografia representou para alguns o atalho mais conveniente para o paraíso do prazer, enquanto para outros tem sido uma movimentada avenida de corrupção moral.

Foi e é considerada uma fonte inesgotável de escândalos e perversões e, ao mesmo tempo, o nutriente de baixo custo do desejo sexual; a principal causa da depravação adolescente, mas também o lubrificante das práticas prazerosas dos adultos; a forma moderna e aceita de objetificar o corpo da mulher e, ao mesmo tempo, o símbolo de sua libertação e emancipação do patriarcado. Sem mencionar que, entre o ying do estigma público e o yang do prazer privado, a pornografia deu vida a um negócio nem sempre transparente avaliado em vários milhares de milhões de dólares.

Mas mesmo nessa linha milenar, acidentada e contraditória da história humana, não faltam pontos cardeais a confiar para não se perder. Dois, especificamente. Iván Rotella, porta-voz da Associação Estadual de Profissionais de Sexologia da Espanha, explica o primeiro: “A pornografia sempre fez parte da nossa cultura. Sobreviveu a todas as ditaduras, todas as épocas e todas as religiões. E enquanto as relações sexuais tiverem algo a ver com seres humanos, vamos assistir à pornografia”.

E o segundo é ilustrado pela arqueóloga Caterina Serena Marcucci. Nas salas do Museu Arqueológico de Nápoles, os reis da dinastia Bourbon coletaram os artefatos de tema erótico ou sexual que a partir de 1748 vieram à tona nas escavações de Pompeia e Herculano. Nas paredes e prateleiras do que também foi chamado de Gabinete de Objetos Obscenos, destacam-se enormes falos de argila, jarras decoradas com cenas sexuais e murais nos quais homens, mulheres e animais mitológicos se contorcem, muitas vezes nus, em poses às vezes imaginativas, às vezes previsíveis. Os monarcas concederam-lhes acesso apenas a pessoas maduras de moralidade reconhecida, ou seja, para homens ricos e poderosos. Eles salvaram os pobres, os jovens e especialmente as mulheres da perdição que tal visão traria.

“O homem sempre teve o direito de desfrutar da sua sexualidade”, diz Erika Lust. Mas nós (mulheres) temos nossos próprios impulsos sexuais, nossos desejos. Nossos corpos na sociedade são hipersexualizados, mas, ao mesmo tempo, nos disseram que deveríamos ter vergonha de ser abertamente sexuais e de ser donas de nossa sexualidade se ela não estiver próxima de um homem”, diz.

Nos últimos 15 anos, o objetivo de seus filmes tem sido acabar com o estigma associado ao corpo feminino, que ela quer mostrar que o prazer feminino é importante, que a única resposta ao pornô ruim é fazer pornô melhor. E o que isso quer dizer?

A primeira vez que viu um filme pornô, Erika Lust se chamava Erika Hallqvist, tinha a mesma idade de sua filha Lara —13 anos — e morava na mesma cidade onde nasceu, em 1977, Estocolmo. “Ugh! Que feio! Achei que o que estávamos vendo não era nada interessante. Que era até ridículo”. Na segunda vez, tinha 19 anos. A experiência foi proposta pelo namorado da época e ela aceitou, intrigada. Dessa vez, não se sentiu enjoada, mas sentiu algo que ainda não conseguia descrever. “Senti meu corpo reagir, diz. Obviamente, ver imagens sexuais poderosas deixa você excitada, e eu queria gostar disso. Mas também me lembro de que meu cérebro discordava”.

Mas a revelação — como ela chama — foi quando viu a obra de Candida Royalle, que Erika define em seu livro Pornô para mulheres como a pioneira dos filmes eróticos dirigidos sob a ótica feminina. “Até então, pornografia para mim era um gênero feito por homens para homens, explica Erika. Mas de repente entendi que não tem que ser necessariamente assim”.

Ela entendeu que as protagonistas não precisam necessariamente ser lolitas seduzidas por professores lascivos ou donas de casa que fazem sexo com o encanador, que não há necessidade de silicone, que as cenas não precisam terminar após a ejaculação masculina, que pode posteriormente haver beijos, carícias e até promessas de amor eterno.

Ela estava estudando Ciência Política na Universidade de Lund e sua leitura era focada em estudos de gênero, ou seja, nas relações de poder na sociedade entre homens e mulheres. Além dos estudos de gênero, Erika Hallqvist era apaixonada pela cultura espanhola e se colocava à prova em situações inusitadas, como passar um verão inteiro a bordo de um navio da Marinha sueca. Finalmente, em 2000, decidiu morar em Barcelona, cidade que naqueles anos era o destino de uma geração de jovens europeus por sua atraente mescla de modernidade cultural e sua invejável qualidade de vida. Lá, nas margens do Mediterrâneo, três eventos decisivos mudariam para sempre a vida de Erika.

O primeiro foi o que ela chama de processo libertador: a exploração de sua feminilidade. Nesse processo, conheceu Pablo Dobner, um argentino alguns anos mais velho do que ela e que se tornaria seu sócio, pai de suas duas filhas e atual CEO da empresa ErikaLustFilms. A segunda foi a descoberta um tanto acidental de um talento para a organização. Mas provavelmente o evento mais importante foi a produção de seu primeiro filme pornô.
A ideia surgiu em 2004, durante uma noite de muito álcool com um amigo que trabalhava para uma conhecida empresa na área de entretenimento adulto. Erika estava terminando um curso de fotografia e decidiu que seu trabalho final seria um curta-metragem com cenas de sexo explícito: The Good Girl. Ela o rodou com suas economias — “Os atores me custaram muito!” — no loft que dividia com seu parceiro.

Durante uma festa em casa, eles o exibiram para amigos, que a incentivaram a enviá-lo para festivais. No ano seguinte, o curta ganhou mil euros (R$ 6,4 mil, em valores atuais) do primeiro prêmio no Festival Internacional de Cinema Erótico de Barcelona. “Aí entendi que era esse o caminho”. No entanto, quando Erika pediu a um produtor pornô que assumisse a distribuição, eles responderam que não havia mercado para esse tipo de produto.

Naquela época, início de 2005, as principais redes sociais eram os blogs e Erika tinha uma conta no Blogspot, uma das plataformas de blogs online mais populares. Ela então subiu o filme para a plataforma que, em poucos dias, foi baixado mais de 2 milhões de vezes. Foi assim que a mágica aconteceu, diz, referindo-se ao sucesso comercial do curta. Logo depois, nasceu Erika Lust (Luxúria, em português), um sobrenome que definiria seu destino.

Nos anos seguintes, Erika fundou, com seu sócio Pablo, sua própria produtora especializada em pornografia feminista, dirigiu outros filmes e os comercializou em DVD em lojas especializadas em entretenimento adulto na Europa e América do Norte. Assim como aconteceu com a Netflix, com a disseminação da internet banda larga e a popularização dos dispositivos móveis, o modelo de negócios passou do DVD para o streaming online.

Atualmente, a empresa ErikaLustFilms conta com quatro plataformas — XConfessions, LustCinema, ElseCinema e The Store — e seus catálogos oferecem mais de uma centena de filmes. As três primeiras são acessíveis por meio de uma assinatura que custa entre US$ 70 e US$ 100 (R$ 360 e R$ 525) por ano. Na quarta, é possível pagar por cada filme individualmente.

Nos últimos 15 anos, a empresa vem crescendo paulatinamente e hoje conta com dezenas de milhares de usuários e assinantes, distribuídos principalmente entre Alemanha, Estados Unidos, França e Canadá, mas com presença também no Brasil e na Argentina.

Neste ano, a receita ficará em torno de US$ 7 milhões (R$ 37 milhões. As dezenas de atrizes, atores e diretores que trabalharam com Erika Lust destacam sua coragem como pioneira de novo gênero, seu profissionalismo e empatia no set de filmagens, e o respeito pelas condições de trabalho e financeiras que muitos definem como satisfatórias.

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A Editora Urbem faz parte do Grupo Novo Dia e edita livros de diversos assuntos e também a Urbem Magazine, uma revista periódica 100% digital.
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