A explicação é relativamente simples. Para evitar contaminação pelo coronavírus, é necessário o isolamento social. E como pode existir isolamento social em casas de pessoas pobres ou nas favelas, onde quatro ou cinco pessoas dividem o mesmo quarto de dormir? Como pode haver isolamento em famílias numerosas, onde todos praticamente precisam trabalhar (e se expor ao vírus)? Só para lembrar: a primeira vítima da covid foi uma empregada doméstica, moradora em favela, no Rio de Janeiro, em março.
Além das condições de moradia – a desigualdade social empurra as pessoas para as periferias – a maioria dos negros e pobres tem empregos na linha de frente, e estão continuadamente expostos ao vírus. Caso de enfermeiros, coletores de lixo, pessoas que não podem deixar de trabalhar – ou morrem pelo vírus ou morrem de fome – e pessoas pobres com comorbidades e consequente acesso desigual ao sistema de saúde. Mas isso não acontece só no Brasil – no mundo inteiro é esta a situação.
Resultados de estudo do Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde, grupo da PUC-Rio, confirmam que pretos e pardos morreram por covid mais do que brancos no Brasil. O grupo analisou a variação da taxa de letalidade da doença no Brasil de acordo com variáveis demográficas e socioeconômicas da população. Trinta mil casos de notificações de covid até 18 de maio disponíveis no Ministério da Saúde foram levados em conta.
“O que a pandemia tem evidenciado é o que vários estudos já mostravam em relação ao maior prejuízo da população pobre e negra ao acesso da saúde. A covid encontra um terreno favorável porque essas pessoas estão em um cenário de desigualdade de saúde e de precarização da vida, afirma Emanuelle Góes, doutora em saúde pública pela Universidade Federal da Bahia e pesquisadora do Cidacs/Fiocruz sobre desigualdades raciais e acesso a serviços de saúde. Isso tudo tem relação com o sistema em que a gente vive, com o racismo”, explica ela, apontando como, por causa do racismo estrutural, pessoas negras têm piores condições de vida.
Considerando esses casos, quase 55% de pretos e pardos morreram, enquanto, entre pessoas brancas, esse valor ficou em 38%. A porcentagem foi maior entre pessoas negras do que entre brancas em todas as faixas etárias e também comparando todos os níveis de escolaridade. O estudo também concluiu que, quanto maior a escolaridade, menor a letalidade da covid nos pacientes. Pessoas sem escolaridade tiveram taxas três vezes superiores (71,3%) às pessoas com nível superior (22,5%). Cruzando escolaridade com raça, isso fica pior – pretos e pardos sem escolaridade tiveram 80,35% de taxas de morte, contra 19,65% dos brancos com nível superior. Os pobres são atingidos de forma muito violenta em relação aos remediados e ricos, afirma o médico sanitarista e professor de saúde pública da USP Gonzalo Vecina Neto.
Nos Estados Unidos, dados levantados pelo APM Research Lab mostra que negros morreram a uma taxa de 50,3 por 100 mil pessoas, comparado com 20,7 para pessoas brancas – mais que o dobro. No Reino Unido, números do Office of National Statistics mostraram que homens negros da Inglaterra e de Gales têm três vezes mais chance de morrer por covid do que homens brancos. “É um fenômeno mundial. Esse vírus mata mais pobres e negros, não porque são negros, mas porque são pobres”, afirma Vecina Neto. Para Góes, os contextos são semelhantes. “As pessoas negras nos Estados Unidos e no Reino Unido também são as que vivem em locais periféricos de menos acesso, menos fornecimento de serviços e com maior prevalência de comorbidades. O que muda são os sistemas de saúde”.
O segundo motivo são as condições de vida da população mais pobre. Vecina Neto diz que pessoas pobres moram em lugares piores, com pior acesso às condições de moradia mais decente e que, com número maior de pessoas por metro quadrado, a propagação da doença é facilitada. A terceira explicação é a falta de acesso a saneamento básico. “No caso do Brasil, principalmente em São Paulo, a periferia não tem oferta de saneamento semelhante às zonas residenciais com distribuição de renda maior, afirma Vecina Neto. A falta de acesso à água é coisa muito grave nessa epidemia”.
O quarto motivo possível: a fome, ou necessidade de trabalhar para ganhar o dinheiro para a comida do dia. “Quem mora na periferia em grande medida faz parte do mercado de trabalho informal, portanto ganha o dinheiro do dia para comer a comida do dia. Se o sujeito não sair todo dia para ganhar alguma coisa para levar dinheiro para casa, vai ter fome na casa dele”, afirma Vecina.
A pesquisa sobre acesso desigual a sistemas de saúde destaca condições relacionadas ao bem-estar, como alimentação, exercícios físicos, lazer. Uma população mais pobre tem menos acesso a boa alimentação e consome mais alimentos industrializados. Também está sujeita a mais estresse pela falta de estrutura da cidade, transporte, moradia. Isso leva a mais um fator, e um fator grave no contexto da covid: a prevalência de comorbidades, como hipertensão e diabetes, que também afetam negros e pobres desproporcionalmente, nessa população. Essas comorbidades contribuem para a mortalidade por covid, e estão mais presentes na população negra e pobre não por uma questão hereditária, mas porque ela está mais exposta a situações precárias.