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quinta-feira, 18 abril, 2024

Brasil criou a primeira lei antirracismo

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Curiosamente, foi uma norte americana quem provocou a primeira lei antirracismo no Brasil. Era Katherine Dunham, coreógrafa e dançarina famosa no mundo inteiro, que veio ao Brasil para diversas apresentações no Teatro Municipal de São Paulo. NO dia 11 de julho de 1950, dia de sua estréia, Katherine aproveitou o intervalo para chamar repórteres e denunciar que o Hotel Esplanada, vizinho do teatro, havia se recusado a hospedá-la por ser negra. O hotel havia mexido com a pessoa errada. Katherine era antropóloga e ativista social nos Estados Unidos, além de especialista em danças de origem africana.

Alardeada pela imprensa, a denúncia repercutiu em todo o país. Uma denúncia que partiu de uma artista de renome mundial não ficou engavetada. O Brasil, na época e como hoje, se considerava um exemplo de democracia racial. O Correio Paulistano criticou o hotel e taxou a atitude de revoltante incidente. O Jornal de Notícias, escreveu que aquilo era odioso procedimento de discriminação. Gilberto Freyre (autor do clássico Casa Grande & Senzala), escreveu em suas colunas de jornais que “aquele ultraje à artista admirável fazia o Brasil se amesquinha em sub-nação”.

A reação mais colérica partiu do deputado federal Afonso Arinos. Seis dias depois, ele apresentou à Câmara um projeto de lei para tornar atitudes racistas em contravenção penal. O projeto previa atitudes como recusa de hospedagem em hotel, proibição de entrada em comércio, recusa de matrícula em escola por preconceito de raça ou de cor, sujeitas a multa e prisão de até um ano. Não foi fácil a Câmara aprovar o projeto. Houve muita polêmica e debate, e somente no dia 3 de julho de 1951, a lei foi sancionada por Getúlio Vargas. Ficou conhecida como Lei Afonso Arinos.

A lei é considerada um marco histórico. O Brasil havia abolido a escravidão em 1888, mas os negros não tinham igualdade – eram vítimas de preconceito e ocupavam as posições mais baixas da sociedade, sem que o poder público se preocupasse.

Foi uma lei histórica. A escravidão havia sido abolida seis décadas antes, em 1888, mas os negros continuavam sendo vítimas de preconceito e ocupando as posições mais baixas da sociedade sem que o poder público se preocupasse com isso. A Lei Afonso Arinos surgiu como a primeira norma destinada a punir e inibir atos racistas.

Os arquivos do Senado e da Câmara, em Brasília, guardam documentos da época que mostram como os senadores e deputados – e por tabela parte da sociedade – encaravam o racismo. Na justificativa de seu projeto, Afonso Arinos escreveu: “A tese da superioridade física e intelectual de uma raça sobre outras, cara a certos escritores do século passado, como Gobineau, encontra-se hoje definitivamente afastada graças às novas investigações e conclusões da antropologia, da sociologia e da história. Atualmente ninguém sustenta a sério que a pretendida inferioridade dos negros seja devida a outras razões que não ao seu status social. Urge que o Poder Legislativo adote as medidas convenientes para que as conclusões científicas tenham adequada aplicação”.

O deputado Plínio Barreto, um dos relatores do projeto de Arinos na Câmara, escreveu em seu relatório: “O preto, o índio e o português concorreram para a formação do nosso povo. Queiramos ou não, temos que considerá-los todos nossos antepassados. Raros os que descendemos diretamente, sem mescla de outros sangues, da forte raça lusitana. Temos que aceitar a herança africana com os seus ônus e com as suas vantagens, integralmente, sem possibilidade de renunciar a qualquer das suas parcelas. Biológica e historicamente, o negro é parte essencial do nosso povo. Seja um bem, seja um mal, seja uma coisa que nos orgulhe, seja uma coisa que nos deprima, é essa a realidade”. Na época, a teoria da moda era que as três raças conviviam pacificamente, tornando o Brasil exemplo para o mundo. A mistura de etnias desde os tempos do descobrimento seriam a melhor prova dessa teoria.

Afonso Arinos, de tradicional família mineira envolvida em política até o pescoço, era ultraconservador, e isso intrigou seus adversários e concorrentes – as eleições aconteceriam três meses após a apresentação de seu projeto. Logo, o projeto tinha propósito eleitoreiro. E Arinos se defendeu e se reelegeu: “Não é verdade que a iniciativa vise ao apoio do eleitorado negro para renovação do meu mandato. Na qualidade de professor do Instituto Rio Branco, que o fui antes de ser deputado, eu, perante os jovens que se destinavam à carreira diplomática, muitas vezes comentei as dificuldades que se antepunham aos negros para terem aberta diante de si a carreira diplomática. Estou certo de que venho ao encontro das vozes do sofrimento e das aspirações, muitas vezes conscientes e muitas outras imprecisas e inconscientes, de milhões de patrícios nossos”.

Na mesma época da criação da lei, a ONU patrocinou estudos sobre a questão negra no Brasil. O objetivo foi descobrir o segredo da tão alardeada harmonia racial brasileira, para aplicá-la pelo mundo, naquele esforço pós-guerra contra um novo Holocausto. Entre os pesquisadores envolvidos no chamado Projeto Unesco estiveram os sociólogos Florestan Fernandes e Roger Bastide. Uma das conclusões dos estudos, para a surpresa geral, foi que a igualdade racial jamais existira e não passava de uma farsa.

Consciente do racismo velado que regia as relações sociais no Brasil, o ativismo negro começou a se estruturar mais solidamente na década de 1930. Após o silêncio imposto por Getúlio Vargas na ditadura do Estado Novo (1937-1945), a militância voltou com força na segunda metade da década de 1940. O movimento negro conseguiu levar à Assembleia Nacional Constituinte de 1946 um artigo que proibiria o preconceito por raça, mas, após acalorados debates ele acabou sendo rejeitado e não entrou na Constituição.

Os militantes ganharam impulso importante em 1948, quando a Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou, com o voto do Brasil, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que diz que todos são iguais perante a lei, sem nenhum tipo de discriminação, inclusive por cor ou raça. Nessa mesma época, os Estados Unidos e a África do Sul eram regidos por leis racistas e segregacionistas. Os conflitos raciais eram frequentes. Os políticos brasileiros estavam apavorados diante da possibilidade de o mesmo tipo de violência se repetir no país, fomentado pelo movimento negro. Afonso Arinos afirmou que sua proposta, sendo aprovada, poderia evitar uma verdadeira luta de raças e garantir a paz social futura.

Até ser revogada, em 1989, a Lei Afonso Arinos nunca saiu do papel. Apesar de os jornais continuarem noticiando episódios de racismo com frequência, praticamente ninguém foi para a cadeia. Por um lado, delegados de polícia e juízes não fizeram a lei valer. Por outro, muitas pessoas negras não denunciaram a discriminação, temendo que a polícia e os tribunais acabassem se voltando contra elas próprias. Quando o movimento negro tentava se rearticular, após uma década enfraquecido pela força simbólica da Lei Afonso Arinos, veio o regime militar em 1964, silenciando o ativismo social. O regime encarou as organizações da sociedade civil como focos de subversão e terrorismo.

O ativismo negro só renasceu com a atual Constituição. O foco mudou da punição dos atos racistas para a inclusão social da população negra. Entre as novas leis, estão a das cotas raciais nos vestibulares, de 2012, e a das cotas nos concursos públicos, de 2014. Katherine Dunham morreu aos 96 anos de idade, em 2006.

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