Uma rede de supermercados da Alemanha lançou, há alguns anos, um anúncio de Natal cujo título “É tempo de voltar para casa”, em que narra a história de um senhor que, voltando do supermercado, recebe um recado deixado pelos filhos na secretária eletrônica dizendo que naquele ano não poderá passar o Natal com ele. Ainda no recado, os filhos disseram que no ano seguinte vão se esforçar para vê-lo. No entanto, passam-se três anos e nenhum deles aparecem. No ano seguinte os filhos recebem uma correspondência comunicando o falecimento do pai. Chegando ao funeral, na casa do pai, deparam-se com uma ceia sobre a mesa e, numa cena inusitada, o senhorzinho aparece na porta da cozinha dizendo: “De que outra forma eu conseguiria que estivéssemos todos juntos. Hum?”. Os filhos e netos se comovem e vão de encontro com o senhorzinho pra lá de esperto. No final, o vídeo termina com o slogan: é tempo de voltar para casa.
É uma história comovente. Chorei um pouquinho, mas logo limpei os olhos para que ninguém especulasse minha vulnerabilidade, e então, depois desse banho de realidade, fui fazer outras coisas e, pelo acaso, reli o texto de Marina Colasanti cujo título “Eu sei, mas não devia”, que retrata o se acostumar com a rotina e que, de tanto se acostumar, acaba esquecendo-se do essencial, e lá no meio do texto ela indaga: “A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá”, e adiante relata: “A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma”.
“Eu sei, mas não devia” foi escrito por Mariana em 1972, mas parece que saiu do forno ontem. Esse trecho que retirei do livro é ou não é o retrato da sociedade de hoje?
A gente se acostuma a coisas demais, algumas vezes em dose pequenas noutras em dose grandes, e quando damos conta, ficamos viciados nessa busca frenética de eficiência. Noite após noite no trabalho sem vivenciar o dia, sem olhar para o sol, sem respirar ar fresco.
A gente se acostuma a não cumprimentar os outros, a não olhar, a não dar bom dia, tampouco boa tarde e boa noite. A gente se acostuma a fazer os mesmos trajetos todos os dias não se permitindo por uma única vez ser impactado pelas miudezas das coisas; a gente não se permite olhar para um pássaro, para uma flor, para um jovem que ajudou um senhor atravessar a rua.
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A gente se acostuma a ouvir barulho demais, se acostuma com as brigas e com os silêncios que gritam. A gente se acostuma a viver com o outro sem amor, por que renunciar se está cômodo? Um presente de Natal, um ‘eu te amo’ no ano novo e todo problema está resolvido.
A gente se acostuma a desejar ‘feliz’ aqui e um ‘feliz’ acolá sem se importar com aqueles felizes mais importantes que acontecem durante o ano. A gente se acostuma a visitar os pais de vez em quando só para marcar presença, só para confirmar que está vivo. A gente se acostuma… e não devia.
A gente se acostuma demais, se acostuma tanto que evita o reencontro, aquele que, em silêncio, anunciava o momento de voltar para casa.